Cortesia de foriente
Introdução à leitura da Década Quarta de Diogo do Couto (Coimbra Martins)
«Nestas naus de 1600, sentido Goa/Lisboa, ia finalmente a “Década 10” de Diogo do Couto, que abrange a história da Ásia portuguesa de 1581 a meados de 1588. Ele mesmo o diria pouco mais tarde, sem precisar em mãos de quem. Nas do ex-vice-rei em desgraça devia ir o Tratado dos Gama, mas a esse nunca o cronista aludira nem aludiria em passo nenhum da sua obra conhecida.
O ano de 1601, e com ele o século, começam em «viradeira» contra D. Francisco e a «estirpe» dos Gama. Inversão da fábula: não pagara o bisneto, pagasse o avô, ainda que em estátua. A de Vasco da Gama, na porta do cais, apareceu coberta de imundícies. Depois, na noite de 3 para 4 de Janeiro, perdeu a cabeça e os braços. Uma das mãos foi atada a um bambu, e pendurada na porta da cidade. A cabeça, de que tinham saltado muitos pedaços da barba, foi simbolicamente posta em cima do pelourinho. Quando amanheceu, apareceu um chito, como se dizia na Índia, pendurado num dos mastros do terreiro:
- «Quem souber deste caso e o descobrir, custar-lhe-á a vida».
Na noite do desacato, Aires de Saldanha, que ainda não fizera a sua entrada solene em Goa, encontrava-se na casa dos Reis Magos. Logo que soube do distúrbio, escreveu uma carta enérgica, e mandou o licenciado Silvarte Caeiro da Grã, que era ouvidor-geral do crime, tirar devassa. Além disso, fez divulgar que seriam pagos, no acto da denúncia, duzentos pardaus a quem fosse em segredo declarar as pessoas culpadas do desacato. Se o denunciante se encontrasse pronunciado por qualquer delito, mesmo que incorresse em pena de degredo, logo ficaria amnistiado. E, se fosse escravo, logo lhe seria dada alforria. O chito, porém, amedrontou mais do que a devassa, levada a cabo, mas pouco concludente.
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De resto, nem só a estátua sofreu. Também a mudança de vice-rei afectou o retrato do Descobridor, que D. Francisco mandara executar. Passou a lugar de menos vista em sala de menos pompa, conforme registaria Diogo do Couto, juntando que não sabia quem ordenara a transferência. Naturalmente sabia...
Como para compensação dos dissabores da partida, D. Francisco fez óptima viagem até ao reino. A sua nau foi a primeira, diz Faria e Sousa, que passou da Índia a Lisboa sem arrear as velas. Mas rebentaram as tormentas dos homens, após a bonança dos elementos. O autor da “Ásia Portuguesa” e laborioso comentador de Camões não diz as que esperavam o conde em Lisboa. Movera-lhe a corte um processo por dilapidação da fazenda real.
Em que situação ficava Diogo do Couto, que dependera inteiramente do Vidigueira, e servira com zelo os seus desígnios? Diria mais tarde o soldado prático que sempre fugira de devassas. Mas, na ocasião desta, não se livrou o cronista de ser nomeado. Infelizmente esta menção do cronista não nos fornece nenhum elemento sobre ele. Foi um tal Álvaro de Carvalho, servidor do Conde Almirante, que se referiu a Diogo do Couto. Mas o papel em que foram registadas as declarações acha-se dilacerado. Percebe-se o nome da pessoa. Não o que dela foi dito.
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Certo é que, se houve para Couto um mau bocado a passar, não durou muito. Quase nada. De resto, quem conhecia até onde fora o cronista? Ter contado os milagres que assinalaram a passagem de D. Cristóvão da Gama à bem-aventurança; ter discursado na inauguração do retrato do navegador; ter pretendido primeiro que Vasco da Gama devia ser cognominado o Índico; e depois, que a Índia devia ser chamada não mais Índia, mas a Gama; ter sustentado que o governo da Índia devia ser pertença hereditária dos Vidigueira; ter escrito o tratado das façanhas desta família; nada disso o impediu de botar novamente palavra quando foi entronizado em Goa o vice-rei Aires de Saldanha. Barbosa Machado teve notícia da competente oração. Começava pelas palavras:
- «Aquele grande Teopompo, rei dos Lacedemónios...»
In Diogo do Couto, Década Quarta da Ásia, volume I, coordenação de M. Augusta Lima Cruz, Coimbra Martins, Fundação Oriente, 1999, ISBN 972-27-0876-7.
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT