domingo, 25 de março de 2012

O Processo de Damião de Goes na Inquisição. Raul Rêgo. «Pois não dizia no prólogo da crónica censurada que “no escrever das crónicas se requere com verdade, dar a cada um o louvor ou repreensão que merece?” Louvor, sim, é claro, agora dar repreensão aos reis e aos grandes como os Braganças, podia lá ser! Damião de Goes, convidado pelo cardeal Infante, em 1558, encargo enjeitado por outros, tinha a noção clara do matagal onde entrava»


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Carta-prefácio
Em todo o caso registe-se que essa “Crónica de D. Manuel”, como diz Joaquim de Vasconcelos, ‘fez o efeito de um raio: fulminou a corte!’
Damião de Goes pedira, logo após a impressão da Primeira Parte da crónica a mercê de um empréstimo de mil cruzados para se acabar essa impressão. Resposta da Rainha:  
  • «E quanto ao empréstimo porque as necessidades de minha fazenda não dão lugar a poder ser tudo, hei por bem de vos mandar emprestar 500 cruzados, com os quais vos deveis remediar a acabar a dita irnpressão».

Voltaremos a esta carta pelo que toca ao cardeal-infante.
Entretanto, o bispo António Pinheiro, que era o cronista-mor do reino, mas não tivera ombros para arcar com a crónica de Manuel I, era encarregado da crónica de João III que também não haveria de escrever. A carta da Rainha para o bispo é dos começos de 1569. Não poderia confiar-se a Damião de Goes o encargo de escrever a de João III, depois das provas de independência dadas por ele na de Manuel I. O seu conceito de historiador era rígido demais para as conveniências e vaidades.
Pois não dizia no prólogo da crónica censurada que “no escrever das crónicas se requere com verdade, dar a cada um o louvor ou repreensão que merece?” Louvor, sim, é claro, agora dar repreensão aos reis e aos grandes como os Braganças, podia lá ser!

Damião de Goes, ao tomar o encargo de escrever a crónica, convidado pelo cardeal Infante, em 1558, encargo enjeitado por outros que se não quiseram meter em silvedos, tinha a noção clara do matagal onde entrava. Ele o diz no prólogo à “Crónica do Príncipe João"; «...Tomando eu este risco claro é que armo laços».
E laços foram eles que lhe haviam de amargurar os últimos dias, sem se conseguir desenvencilhar.
Não podiam ser todavia os Bragança a ressuscitar, por decisão directa., o processo. Nem tão-pouco o seriam os familiares. Não tinham para isso, uns e outros, poder. De facto: 
  • ‘a mão sinistra que, em 1571, empurrou Damião de Goes para o cárcere inquisitorial foi a mesma que, em 1545, impediu a sua prisão’.

Di-lo António Baião, sucessor de Damião de Goes na Torre do Tombo e que muito se ocupou, ao longo de mais de meio século, com o acervo dos arquivos inquisitoriais. Nota ele que, na folha 2 do Processo, o promotor de Justiça propõe, depois da denúncia de Simão Rodrigues, em 1545: 
  • ‘Vi estas culpas e pelo que por elas consta e pela qualidade da testemunha que é legalíssima «et omni exceptione major» parecem obrigatórias a prisão para por elas ser preso Damião de Goes nelas conteúdo...’
  • E, no verso da mesma folha, mão de inquisidor, sem dúvida, escreveu a nota: ‘Foram vistos estes autos diante de S.A. e pareceu «supersedentus nunc esse»’.

Quer dizer que Sua Alteza o inquisidor-geral cardeal-infante Henrique entravou a máquina que o jesuíta quisera pôr em movimento. Que se aguardasse por agora. E aguardou-se tanto e com vontade tão firme do Cardeal de não deixar seguir o pleito que nem a nova denúncia do mesmo padre Simão Rodrigues, em 1550, o reanimou.
Dada a consideração que o cardeal infante mostrou a partir de determinada altura pela ‘Companhia’, a ponto de se tornar o maior protector dela em Portugal, esse entrave ao processo contra Damião de Goes nos dá também a medida da consideração em que ele tinha o humanista recém regressado.
Expressões de encómio tivera já para com ele nas cartas que foram juntas do processo não se sabe por quem e que lhe escrevera em 1541, para a ‘Flandres’, a propósito da intervenção da ‘Censura’ no Fides, Religio, Moresques Aethiopum. Nelas é evidente o desejo de não magoar o autor e nelas encontramos expressões como:  
  • E vos rogo, pois sabeis que gente é a portuguesa e quanto folga de repreender que daqui em diante empreendais antes obra de outra qualidade que eu sei que bem vós saberes fazer’.
  • Noutra carta: ‘Eu, como na outra vos escrevi vos tive sempre e tenho naquela boa conta que é razão; e fui e sou muito satisfeito de vós e vos mostrei muito amor. O que eu creio que vós deveis saber e ter conhecido de mim. Pelo que me espanto crerdes que vos tenha em outra conta e que, por ter alguma má suspeita de vossa consciência, mandei que os livreiros sobrestivessem na venda da vossa obra. E porque eu vos tenho agora na mesma conta de tão bom homem e tão bom cristão como sempre vos tive hei por escusado responder às razões que me dais porque eu o creio, assim como dizeis’.

In Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na Inquisição, Assírio & Alvim, 2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT