quinta-feira, 5 de julho de 2012

A Tertúlia Ocidental. António José Saraiva. «Antero era para Martins um mestre sabedor e atento, que lhe corrigia os erros de redacção e de gosto; lhe indicava e emprestava livros; que se oferecia para preparar com ele as novas edições; solidarizava-se, inclusivamente, com as suas posições políticas, género ‘para onde você for eu vou’»


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O encontro
«Dois homens jovens desembocaram da loja da Livraria Bertrand e subiram o Chiado até à esquina da igreja do Loreto. Dali foram andando pela rua da Misericórdia acima e entraram num prédio que dava para o jardim de S. Pedro de Alcântara. Um deles era pálido e tinha um ar doentio. Os olhos dilatados e abstractos de visionário, como quem olha para dentro e não vê o que tem diante de si. Alguma ênfase no porte e mesmo uma certa rigidez no andar. O seu companheiro era um homem alto, distinto e de porte airoso, vestido de preto: chamava-se José Fontana e era empregado administrativo da Livraria Bertrand.
Fontana ia apresentar o seu amigo a uma roda de rapazes que se juntava, para cavaquear, no prédio onde entraram ambos. Eram quase todos diplomados na Universidade de Coimbra, e perante eles Fontana sentia-se intimidado. O companheiro de Fontana, Joaquim Pedro Oliveira Martins, era também um homem sem curso, já empregado; empertigava-se contra o acanhamento perante aqueles jovens ‘doutores’ que falavam brilhantemente e com uma loquacidade por vezes frívola sobre todos os assuntos conversáveis. Martins conhecia alguns de nome e pretendia travar relações com Antero de Quental, que dois anos antes tinha publicado um sensacional panfleto a propósito do afundamento da monarquia em Espanha: “Portugal perante a Revolução de Espanha”. Martins ficara trespassado pela sua conclusão:
  • Nas nossas actuais circunstâncias o único acto possível de verdadeiro patriotismo consiste em renegar a nacionalidade.
Martins tinha-se por um ardente patriota, e contra o fantasma da união ibérica escrevera dois anos antes um romance histórico intitulado “Phebus Moniz (1868)”, que o autor mais tarde retirou do mercado.
Antero era o polo magnético do grupo de S. Pedro de Alcântara e entre os dois homens houve um verdadeiro ‘coup de foudre’, cujos efeitos se prolongarão até ao fim da vida. O “In Memoriam” de Antero de Quental é uma prova do poder de atracção que Antero exerceu sempre nos seus companheiros. Entre ele e Martins estabeleceu-se uma dupla relação, filial e paternal. Antero era um espírito brilhante, improvisador, oscilante, em constante desacordo consigo próprio e que precisava da contradição para se afirmar; não conseguiu fixar-se, nem numa actividade, nem numa mulher, nem num sítio. Entre o continente e a ilha de S. Miguel, entre a poesia e o pensamento discursivo, entre a doutrinação e a acção prática, entre a reflexão e a agitação das massas, foi um constante vagabundo. Uma vez na vida uma paixão levou-o a pensar no casamento com uma aristocrata francesa. Hesitou e pensou.
A desistência causou-lhe um tal abalo que se refugiou em casa de Oliveira Martins, onde intentou suicidar-se. Martins não tinha o brilho e o poder de sedução do seu principal amigo, mas inspirava-lhe uma confiança paternal. Tinha casa, mulher e emprego. Fizera-se a si mesmo como um ‘self made man’. Era para Antero uma ‘casa’ onde ele se refugiava nas horas de crise e era, além disso, um polo de contradição. Começaram por discutir em público e continuaram em permanente diálogo epistolar. Martins era para Antero um apoio sólido, uma terra firme, e tinha para o seu amigo uma ‘cabeça cronométrica’. Antero era para Martins um mestre sabedor e atento, que lhe corrigia os erros de redacção e de gosto; lhe indicava e emprestava livros; que se oferecia para preparar com ele as novas edições; solidarizava-se, inclusivamente, com as suas posições políticas, género ‘para onde você for eu vou’.


Fontana, na mesma reunião, apresentou Martins aos outros participantes do Cenáculo. Um deles, muito elegante, maravilhou o recém-vindo com as suas histórias. Martins admirou o seu humor, a sua verve, a sua mímica. Era Eça de Queiroz. Tinha acabado de regressar de uma viagem ao Egipto e à Palestina. Outro era um rapaz educado no colégio alemão de Lisboa, também esmeradamente vestido, mas sem espalhafato. Cursava Agronomia e parecia um jovem diplomata. Chamava-se Jaime Batalha Reis e provinha de uma família de lavradores ribatejanos. Os três, Antero, Queiroz e Jaime, eram extraordinários e inesgotáveis conversadores. Martins ficou encantado e conservá-los-ia como amigos para toda a vida. Havia outros: a um canto, mais apagado, um advogado nascido na ilha Terceira e poeta lírico, Manuel de Arriaga; mal imaginava ele então que havia de chegar a presidente da República Portuguesa, ocupando o palácio onde agora residia o Príncipe Real.
Eram todos republicanos, como o próprio Fontana. Os dois recém-chegados iam ao Cenáculo procurar redactores para um jornal bimensal intitulado “República - jornal da Democracia Portuguesa”, de que Fontana seria o editor e Martins orientador e redactor. Ainda não aparecera no grupo a dissidência socialista, mas a expressão ‘jornal da democracia portuguesa’ marcava a orientação “democrática”, isto é, “esquerdista” (para falar à moda de hoje), destes republicanos. “Democrático” era mais atrevido que ‘liberal’». In Tertúlia Ocidental. Estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e Outros, António José Saraiva, Herdeiros de António José Saraiva e Gradiva Publicações, 1996, ISBN 972-662-475-4.

Cortesia de Gradiva/JDACT