domingo, 5 de agosto de 2012

A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho. Carolina Michaelis de Vasconcelos. « Tão inaceitáveis que foi preciso serem reescritas, refeitas com arte e engenho, mas também com suprema liberdade interpretante, por um excelso poeta lírico como Almeida Garrett, não para serem adoptadas…»


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«Abro parêntese, ou abro um capítulo novo, a fim de explicar porque me servi do epíteto ‘autêntico’, com relação à cantiga de Sancho I e à do seu coevo Pay Soares Taveirós, modelos em que podemos aprender como é que namorados portugueses suspiravam antes de 1200, e até 1350.
Ninguém que esteja familiarizado com a verdadeira poesia arcaica, galego-portuguesa, isto é, com as dezassete centenas de cantigas profanas do Cancioneiro Geral do primeiro período da literatura portuguesa, e também com as quatrocentas e tantas composições sacras de Afonso, o Sábio: hinos encantadores, e ingénuas narrativas de milagres de Nossa Senhora; ninguém que conheça os assuntos, o espírito, as formas métricas e a linguagem dessas primitivas cantigas de amor, singelas, sinceras e comedidas como as duas amostras que apresentei: de sintaxe um tanto complicada, talvez, mas sempre típica, e quanto à exteriorização das ideias, sem requintes e circunlóquios retóricos e sem figuras audazes; pobres mesmo de ideias, visto que em regra cada composição só contém um único pensamento que é repetido, levemente variado, em três ou quatro estrofes cantáveis. Ninguém, repito, que conheça a fundo esses monumentos poderá aceitar como legítimos produtos da musa lusitana aqueles artefactos complexos, forgicados num idioma pseudo-arcaico, que se chamam ‘Cartas de Egas Moniz Coelho’, primo do mais afamado, que foi protótipo da lealdade portuguesa.
Nem por um minuto. Há-de repeli-los instintivamente, como falsificações; e depois, reflectidamente se os analisar com ciência e consciência. Nem lhes há-de valer a conjectura que antes de 1200 haveria, como houve sempre- e há depois de 1900, estilistas e pensadores muito individualistas, ‘sui generis’.
Tudo, absolutamente tudo prova a falta de autenticidade das ‘Cartas’. A não-existência de pergaminhos ou papeis vetustos, com letra paleograficamente aceitável, que contenham essas ‘Cartas’. A nefasta época em que surgiram: entre 1580 e 1640, era de triste decair do sentimento nacional. O pouco crédito dos autores que os propagaram.
O facto que anteriormente não houvera nem a mais leve alusão aos amores desse Egas. A falta p. ex. de uma parca fórmula que nos ‘Livros de Linhagens’ o nomeie e caracterize quer como amante infeliz, o que morreu de amor, quer como poeta, o que foi bom trovador. A falta aí mesmo de notícias a respeito da infiel Ouroana, concentradas em algum dos epítetos usuais com que os linhagistas punham no pelourinho ‘aquelas que foram más’.
Quanto à linguagem, as ‘Cartas’ são simplesmente monstruosas. Uma bárbara mixórdia incoerente, anti-histórica e anti-estética, de termos cultos ‘desusados’ de termos dialectais, só usados nas camadas baixas da Galiza, e de formações completamente arbitrárias inventadas ‘ad hoc’ e nunca documentadas.
Quanto à prosódia e à métrica, as cartas são posteriores de muito à época de Afonso Henriques em que os impostores e os crédulos as colocam! ‘São modernas, seiscentistas, quanto à concatenação de ideias, em dez e em treze coplas sucessivas’. Refalsadas sobretudo quanto ao modo de dizer, ao estilo artificiosamente rude e grosseiro.
Tão inaceitáveis que foi preciso serem reescritas, refeitas com arte e engenho, mas também com suprema liberdade interpretante, por um excelso poeta lírico como Almeida Garrett, não para serem adoptadas e consagradas pelo génio popular, ‘isso é e será sempre impossível’, mas para que os historiadores, os críticos, os psicólogos e intérpretes musicais do coração português, os elogiassem, e contrastassem com o seu voto, ao passo que as cantigas realmente autênticas, adulteradas embora por copistas estrangeiros, são, na maior parte, ‘compreensíveis, fáceis mesmo’, e promovem comoção estética, sem que seja preciso modernizá-las.


A de Sancho I e a de Pay Soares Taveirós são flores silvestres de poucas pétalas, despretensiosas, mas cheias de graça e aroma; para mim, muito mais humanas e belas do que aquelas flores hieráticas de garrido papel que é costume tratar de ‘Relíquias venerandas’». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho, “Saudade minha – quanto te veria?”, Colecção Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-665-397-5.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT