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«Ou antes, alguém, ao remexer aquele entulho, onde estavam roupas,
livros sem interesse, velhas caixas de bombons, frascos de remédio vazios,
cartas rasgadas, panos de costura, terá pegado na fotografia, e terá perguntado
quem era aquela mulher, a não ser que apenas se tivesse rido daquela imagem
anacrónica, e tivesse querido pregar alguma partida, prendendo a fotografia num
muro e deixando-a ali, expondo a mulher como se ela fosse um anúncio publicitário,
embora o tom baço do papel desse mais a entender um anúncio funerário do que
propriamente um apelo sensual. A fotografia ainda ali ficou algumas horas, sem
que ninguém tivesse reconhecido a suicida, a não ser alguma vizinha de idade,
mas a essas já ninguém ligava.
Porém, aquela cara, e sobretudo a fixidez do seu olhar, começou a provocar
alguma inquietação; as crianças atiraram-lhe pedras, começando a rasgar o
papel; e quando o carro do lixo passou, deitaram-na para cima dos sacos, onde
apanhou em cheio com o sol que começava a bater com força, e viram-na
desaparecer desta vez para sempre, mas o que ficou na memória não foi tanto o
rosto de alguém cuja identidade continuou ignorada, mas sim o facto de que o
sol provocou uma alteração no rosto, abrindo o que pareceu ter sido um sorriso,
e não foi tanto um sorriso de felicidade como um esgar de ironia, por trás do
qual surgiu, de súbito, todo um passado de tragédia e de solidão.
É claro que já ninguém saberia dizer se essa tragédia teria sido um
resultado da sua ligação com o Senhor; nem havia quem ousasse desenterrar
histórias velhas, perguntando às pessoas daquele tempo o que é que, de facto,
era verdade, se é que a verdade a respeito do mundo interior e secreto de cada
um, alguma vez, se pode saber. Mas a sugestão sensual da fotografia talvez
pudesse reacender a especulação acerca do túnel, e de uma câmara secreta que
teria sido usada como cave para vinhos, e depois pintada com cores vivas e
mobilada com um divã no qual os dois realizavam o seu desejo. É de referir, no
entanto, que não se acrescentava muito mais para além disso, já que a imaginação
erótica era relativamente rudimentar naquelas sociedades, limitando-se a
conceber o acto na sua posição mais tradicional, e ainda por cima praticado
apenas para esgotar o anseio do macho, ficando a mulher quase sempre insatisfeita,
e ele retirando-se logo para casa, porque não lhe convinha estar muito tempo
sem ser visto.
Teria sido essa insatisfação que explicou o seu suicídio, fazendo dela
uma mulher duas vezes insatisfeita, pela terra que a desprezava e pelo amante
que a deixava a meio caminho do êxtase? É o tipo de interrogações que dificilmente
terão uma resposta; o que se pode dizer é que, se é verdade que e relação
sexual esporádica, numa altura de festa, ou durante o carnaval que favorece
amores de ocasião, não deixa grandes consequências, embora possa deixar grandes
recordações, já o amor prolongado cria expectativas que, tornando-se
impossíveis porque jâ à partida o eram, a não ser quando os amantes coabitam na
mesma casa, como patrão e empregada, e podem manter a aparência da distância
social, embora vivam como marido e mulher, até atingirem uma idade em que os
compromissos sociais já importam pouco e, então, sobretudo se existem filhos
ilegítimos, acabam por oficializar a relação, vêm então, essas expectativas, a
determinar decepções que, pouco a pouco, mergulham a pessoa na melancolia que
tem, no fim, a corda pendurada numa trave, ou num ramo de árvore, que é o fim
habitual e, no fundo, menos doloroso do que o veneno de escaravelho, para quem
opte pela solução da morte». In Nuno Júdice, Vésperas de Sombra, Quetzal
Editores, Lisboa 1998, ISBN 972-564-359-3.
Cortesia de Quetzal Editores/JDACT