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«Vejamos ainda outra intrigante questão relacionada com o mesmo
assunto. Não tem fundamento, a meu ver, a hipótese de que foi pelo desgosto de
a sua proposta não ter sido aceite que Camilo partiu para Macau. Na carta em
que se declara, diz que meditou um ano antes de escrevê-la (Outubro de 1893) .
Ora, já tinha concorrido antes (19-VIII-1893) a um lugar de professor de Liceu
em Macau, e foi nomeado em 18 de Dezembro para a disciplina de Filosofia dessa
mesma escola.
De resto, quando Ana responde em 20-X-1893 ‘recusando’, já sabia, ela e
os seus familiares da ida para Macau:
- «E como vai ficar longe esquecerá a mágoa que porventura lhe fará a minha recusa [...]».
Porque meditou Camilo durante tanto tempo? Porque se declarou depois de
concorrer para Macau? Se fosse aceite, desistiria da nomeação? Fê-lo em
desespero de causa? Íntimo como era da família e, sobretudo, de Alberto, junto
de quem trabalhava na comarca de Óbidos cerca de um ano antes da partida para Macau
em 17 de Março de 1894, permito-me pensar que Camilo saberia que Ana tinha
namoro com Paulino de Oliveira.
Arriscou tudo por tudo. Perante a recusa, a outra alternativa era o
Oriente. E escrever aquela dolorosa ‘Canção da Partida’, que João de Castro
Osório, preocupado sempre, e compreende-se, em esconder a paixão de Camilo pela
mãe, não resiste a comentar ser ‘sugestiva de irremediável desgosto’. Bem o
sabia ele, com as provas na mão.
Ana de Castro e o ‘Salvamento’ da Clepsydra
Ana de Castro Osório começou a publicar por volta dos vinte e cinco
anos. Tendo recolhido de início os contos da tradição popular que ouvira à sua
velha rendeira, deu-lhes forma literária, realizando com eles o que Almeida
Garrett, escritor que admirava profundamente, fizera com os romances
tradicionais.
Ouvi a meu pai que a sua tia Ana passava em Setúbal um dia, todas as
semanas, com uma internada do Asilo das Velhas (ainda hoje existe: é o Asilo
Acácio Barradas, pertencente à Misericórdia). Recolhia as histórias que as ‘avós’,
as mulheres do povo, guardavam na memória. Na falta de editor, resolveu
publicar, a partir de 1897, em folhetos mensais de trinta e duas páginas, ilustrados
por Leal da Câmara, os “Contos para as
Crianças”, que enviava pelo correio aos ‘pequeninos assinantes’, mediante módica
quantia, recebendo eles, no fim de cada série de seis números, as capas; além
disso, no fim do ano distribuir-se-á um prémio que será o testemunho da minha
gratidão. Assim nasceu entre nós a literatura infantil, constituindo esses
contos, durante gerações, o modelo do imaginário das crianças portuguesas, para
quem também traduziu Grimm e Andersen. ‘Branca-Flor’, ‘O Homem da Moca’, ‘O
Esperto’ e tantas outras narrativas, reunidas em dezoito volumes, com muitas
reedições, são autênticas obras-primas, num estilo simples e elegante, usando
tanto quanto possível as criações verbais da tradição oral. Na década de 60,
são editadas pela Sociedade de Expansão Cultural as “Histórias Maravilhosas da Tradição Popular Portuguesa”, em três
volumosos tomos, num total de setenta e sete narrações e, a seguir, os “Contos, Fábulas, Facécias e Exemplos da Tradição
Popular Portuguesa”, em quatro volumes, com setenta narrações, de acordo
com a revisão definitiva, efectuada pela escritora, agrupando os textos nesses
dois grandes conjuntos, que rapidamente se esgotaram.
Na década de 90, a obra de Ana de Castro Osório reaparece com êxito.
Primeiro, a Terramar reedita “Branca-Flor
e Outras Histórias” (1990 e 1998) e “O
Esperto e Outras Histórias” (1991), livros primorosamente ilustrados por
Luís Manuel Gaspar. Depois, o Instituto Piaget publica, a partir de 1995,seis
volumes de contos infantis, ilustrados por Leal da Câmara, Roque Gameiro e A.
Jourdain (os pintores preferidos de Ana de Castro) e, ainda, por Mily Possoz. A
escritora volta a ser lida pelas crianças portuguesas. Fernando Vale pretendeu,
com a reedição desses livros, satisfazer a necessidade de fazer chegar a
cultura portuguesa aos luso-descendentes espalhados pelo mundo».
Canção da Partida
[…]
quem vai embarcar, que vai degredado,
as penas do amor não queria levar…
Marujos, erguei o cofre pesado,
lançai-o ao mar
E hei-de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta…
- A última, de antes do teu noivado.
[…]
In Camilo Pessanha
In António Osório, O Amor de Camilo Pessanha, edições ELO, obra apoiada
pela Fundação Oriente, colecção de Poesia e Ensaio, Linha de Água, 2005, ISBN
972-8753-43-8.
Cortesia da F. Oriente/Linha de Água/JDACT