(continuação)
Parir e Nascer
«A mecânica do sexo só vale o que vale a ética do valor que a suporta.
A ninguém interessa como nasce um filho, se não souber a causa final porque o
filho nasce. A mecânica sexual apenas ensina o que já está aprendido no instinto
que, por certo, nunca se engana (...) de processo, ou de como fazer. O que importa
é, dentro da cegueira do instinto, instilar a luz da inteligência, que garante
a necessidade da mecânica. Quer dizer, a simbologia amorosa ensina as causas
principais dos actos materiais do amor. A mecânica realiza o funcionamento dos
actos materiais, como se as causas não existissem.
A simbologia amorosa ensina as causas na figura do ‘Pelicano’, rasgando
o peito, para alimentar os filhos. É a pura maternidade. Na ordem humana, o ‘Pelicano’
rasgando o peito, para alimentar os filhos, significa que a mãe deu amamentar o
filho segundo o fluxo do seio. A maternidade que, entre o seio e o filho,
interponha objecto estranho e sucedâneo, comete o divórcio.
O divórcio é o que divide o matrimónio, que não se consuma, íntegra e
perpetuamente sem o património: a mãe, como o véu e, o pai, como barca. Mas
divórcio é o que cinde a própria realeza amorosa do matrimónio, ou maternidade:
o dar-lhe o leite. Alimentar o filho é um acto de amor, mas, como vimos atrás,
alimentar com biberão não tem o valor do alimentar com o próprio alimento do
amor. No biberão, a mãe oferece o comer ao filho: no leite do seio, a mãe dá de
comer ao filho, e isto, claro, jamais pode ser atendido pela inodora ciência das
mecânicas sócio-sexuais, ciência inerente às sociedades multitudinárias da
urbanidade, já esquecidas do paraíso terreal, a terra onde um homem nasce, que é
sempre o paraíso.
É a cinza, que não tem rima. Toda a vida ardeu e sucumbiu, até de dentro
das cinzas, surge e vida. A interpretação tripular, mais realista, diz: renasce
nas cinzas. Lá escondemos a ninhada dos óvulos, que as cinzas arrefecidas
conservam em qualidade; e, quando for o tempo, o calor solar aquece as cinzas,
mas ovos gestam, e a Fénix renasce. Fénix, aqui, não é nenhum pássaro mítico. É
o ser que nasce, gerado na terra, aquecido pelo céu. E o mistério da Incarnação,
nesta terra parturiente, que os homens querem sujeitar a pílula, para a
infecundarem, surge de novo na clareira do meio-dia.
A palingénese grega, de novo nascimento, diz-nos de tudo isto. Não é
mítica sem substracto, porque era da filosofia grega o saber do ser e, por
consequência, que nenhum mito subsiste sem garantia do real, por isso que o eu
é o real do real.
A palingénese quer, porém, tal como se figura, não um renascer
contínuo, mas um renascer definitivo e perpétuo, por isso que a palingénese tem
menor equivalência na Fénix do que tem na Ressurreição. A palingénese é a
ressurreição dos mortos, a instauração do hebraico (…) o mundo novo. Mundo novo
a que se vai pelo progresso, o qual não é progresso sem perfeito conhecimento
de toda a causa, conhecimento esse que, na medida humana, imperfeita e parcial,
carece de correctivo regresso. Do contínuo apuramento do saber parar, (…) da
sabedoria perdida. Instaurar o mundo na sabedoria perdida é a regeneração e a
ressurreição, prometida a todos. Urge nascer de novo, o mundo espera pelo homem
renascido, o homem novo, que surdirá nos escombros para onde se encaminha. A
Fénix renasce nas cinzas, o que avaliza a esperança de renovação de todas as
coisas». In Pinharanda Gomes, A Teologia de Leonardo Coimbra, Guimarães
Editores, Colecção Filosofia e Ensaios, Lisboa, 1985.
Pintura de Eduardo Malta
Cortesia de Guimarães Edt./JDACT