“A maioria, senão todas, das
significativas obras aludidas surgem já quando a própria Revolução se está fabricando
um passado e se volve passado... Os textos-crónicas 'em cima' do acontecimento
de Abril ou próximos dele, como Era a
Revolução, de Júlio Conrado, são raros”. In Eduardo Lourenço, Colóquio
Letras nº 78, 1984.
«Salustiano Bernardes pensou então no peixe. Tê-lo prisioneiro uns
minutos, depois privá-lo de vida por degola, o projecto. Mas que horror, o
sangue. Que desumanidade, o golpear do anzol. Acharia a serenidade procurada
nesse assassínio usando métodos limpos: os dedos travando lenta,
irremediavelmente, os movimentos dos beiços polpudos, o arfar das barbatanas, a
cauda em febre. Vivia, porém, longe do rio, mais longe ainda do mar, não possuía
cana, linha, isco, jamais sentira a necessidade de agredir a fauna aquática.
Nem por isso deixou de imaginar o cárcere: um aquário. Um aquário pousado ali
mesmo, na mesa de trabalho, em cujas águas aguardasse a execução aquele que poria
a descoberto a sua alma de carrasco. Assassino, ele? Sorriu. Assassino, sim.
Assassino menor de espécies inocentes, conforme à lei geral do universo.
Julgava Bernardes que, sacrificando o pequeno ser anónimo, aliviaria a tensão
provocada pela turbulência que com o nome de revolução explodia nas ruas.
Julgava poder renunciar assim ao diário comércio do sono, materializado nas
doses maciças de tranquilizantes com que pagava o armistício nocturno.
Pareceu-lhe, em conclusão, difícil dispor de um peixe nas condições requeridas.
Fizera, de resto, um pequeno açambarcamento de tranquilizantes, na expectativa
de o golpe iminente poder vir a dar-se e o provável encerramento das farmácias
não o apanhar desprevenido.
Tudo está a ser ostensivamente posto em causa: manifestações em cadeia,
petardos, tiros, greves, desavenças entre irmãos, ajustes de contas, velhos
ódios subitamente acesos. E o ventre do Outono escaldante de 75. Resgate de
quarenta e oito anos de amochanço. O desespero em liberdade. A festa de um
certo luto para amanhã, de uma certa mística suicida. Nesta rentrée decisiva muita coisa se passará
que, acumulada ao que já se passou, argumenta a favor de sangrento passo à rectaguarda,
requiem pelo romantismo social. O
desastre. Ou não?
Optimistas profissionais assediam Bernardes com justificações do ponto de
vista histórico assaz respeitáveis:
- ‘Meu caro: se quer escrever qualquer coisa que valha a pena, não se esqueça de que este é um tempo de entre uma era extinta e outra que começa. Pedimos-lhe que reflicta. A razão e o futuro estão do nosso lado e você sabe isso perfeitamente. Se não tivéssemos a certeza de que vai concordar connosco não estaríamos aqui nem seríamos optimistas. Acontece que nos pagam para o sermos, coisa de somenos porque o seríamos em qualquer caso. Nada se consegue sem crença e sem luta. Verdade? Verdade. Num ponto, ao menos, os nossos pensamentos coincidem. Agora, atenção: é, preciso que os que lerem a sua novela fiquem a saber que o preço pago na banca do livreiro constituiu um sacrifício incomparavelmente mais humilde do que o exigido aos arrancadores das velhas raízes, aos cientistas das transformações colectivas que nas prisões congeminaram o resgate do homem português. Pondere bem nisto’.
E se não estiver de acordo? Damos uma palavrinha aos sindicatos e você
não vende um único exemplar. Bernardes pede-lhes, com delicadeza, alguns esclarecimentos:
- ‘Tendo em conta a situação actual, não acham que falharam por não conhecerem o barro que lhes deram para moldagem?’
A resposta dos optimistas não se faz esperar:
- A situação actual, não sei se a conhece por dentro, é inteiramente controlada por nós. Ainda que fosse desfavorável, o defeito poderia ter sido do barro, embora ao artista coubesse a responsabilidade de se assegurar da boa resistência do material. Mas a moldagem, com erros, com defeitos, prosseguirá até à vitória final.
Bernardes insiste:
- E por cada erro de moldagem quantos indivíduos serão destruídos? Milhares. Mas nós não acreditamos em indivíduos.
Acreditamos nos povos e acreditamos na
História».
In Júlio Conrado, Era a Revolução, Editorial Notícias, Lisboa, 1997,
ISBN 972-46-0859-X.
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