«Quando Afonso X leva a efeito a sua monumental obra “Cantigas de Santa Maria” é a identidade
literário-religiosa peninsular que vem ao de cima e não a de autores situados
numa componente geográfica exterior ao país recém fundado. Essas ‘cantigas’, no
seu fulgor musical e estético-literário, têm assim ainda o carisma de uma
realidade intrinsecamente luso-castelhana.
Já na canção 175 esse poeta testemunha-nos, com efeito, “como
Santa Maria livrou de morte üu mancebo que enforcaron a mui gran torto, e
queimaron un herege que llo fezera fazer”. Trata-se de um relato poético em que
se fala das atribulações de um romeiro que veio da Alemanha a Santiago de Compostela.
"E el foi-ss' a Santiago,
u avia prometudo;
e aa tornada
non lle foi escaeçudo
d'ir u seu fillo leixara
morto, que fora traudo,
e foy-o muito catando,
chorando con piadade,
Refrão:
Por dereito ten a Virgen,
a Sennor de lealdade
que sobr'el se torn' o dano
de quen jura falssidade,..".
Na canção 184, que por sua vez viria a ser posta em música
por Thomas Binkley, fala-se de ‘como Santa Maria livrou de morte üu menynno que
jazia no ventre da madre, a que deran hüa cuitelada pelo costelado’.
“E de tal razon com' esta
un miragre mui fermoso
vos direi que fez a Virgen,
Madre do Rei poderoso,
en terra de Santiago,
en un logar montannoso,
(hu) hüa moller morava
que era prenn' ameude
Refrão:
A Madre de Deus
tant' é en ssi gran vertude,
per que aos seus
acorre e dá saude...”
Reportando-se a este tema específico, Binkley refere que o
tema desta ‘cantiga’, decorre certamente na região de Señora de Piscocom, numa
zona de montanhas situada entre Leão e Galiza, numa altura máxima de 2214
metros e onde vivia a mulher cuja história é cantada neste tema.
Num outro tema de Afonso X (C. 218), somos conduzidos até à
forma ‘como Santa Maria guareceu en Vila-Sirga un ome bõo d’Alemanna que era
contreito’.
“...En terra d’Alemanna
un mercador onrrado
ouve, rico sobejo
e muit' enparentado
mas dü' anfermedade
foi atan mal parado...
El en esto estando,
viu que gran romaria,
de gente de sa terra
a Santiago ia...
E a medes fezeron
log' en que o levavan,
e pera Santiago
ssas jornadas fillavam,
e a mui grandes peãs
alá con el chegavan;
mas non quis que guarisse
Deus, polos seus Pecados.
Refrão:
Razon an de seeren
seus miragres contados
da Sennor que ampara
aos desamparados."
[…]
Nas Canções de Santa
Maria de Afonso X alusivas a Sant’lago, atrás apontadas, para lá da crença
do poeta nesse Apóstolo, algo mais nos será lícito concluir. Esta figura maior
do "período alfonsino" na área trovadoresco-medieval da literatura
portuguesa permite-nos, com efeito, através das suas estrofes, concluir pela
existência de uma ‘mentalidade de negócio’, da população em geral no que respeita
à crença. Na realidade, ia-se em romagem a Santiago da Galiza não apenas para ‘honrar’
ou homenagear o Apóstolo mas, antes pelo contrário, para negociar essa presença
contra a concessão de uma benesse: o ‘milagre’. Ia-se ali, é um facto, mas em
troca ‘exigia-se’ que o santo curasse os cegos e os mudos, os paralíticos e os
coxos, os ávidos, de tranquilidade de espírito, ou os famintos. A leitura do
fenómeno milagreiro como um processo
de troca é algo que não poderá estar indissociado destas verdadeiras romagens
em demanda do milagre». In Manuel
Cadafaz Matos, O Culto Português a Sant’Iago de Compostela ao longo da Idade
Média, Peregrinações de homenagem e louvor ao túmulo e à cidade do Apóstolo
entre o século XI e século XV, Instituto Português do Património Cultural,
Lisboa, 1985.
Cortesia de Instituto Português do Património Cultural/JDACT