‘Uma reflexão penetrante acerca das relações humanas, da liberdade, do
amor e da procura pela verdade’.
«No dia a seguir ao funeral, de manhã, Judit estava sentada à sombra, debaixo
da frondosa figueira que espalhava os seus ramos retorcidos em frente da casa.
Ninguém tinha vindo vê-la desde que o cortejo fúnebre se dispersara no
cemitério na tarde anterior e, talvez por isso, permanecia na expectativa e, de
certo modo, escondida por entre as folhas verdes. O aroma suave e doce dos
figos maduros parecia aumentar a sua tristeza.
Tinha colocado um belo vestido novo, branco, que se
não fosse pela dor lhe daria um ar festivo. Lembrou-se do motivo pelo qual o fizera,
cumprindo o pedido de Aben Ahmad, e o desgosto que sentiu por ter pago tanto
pelo tecido de seda. O gasto obrigara o marido a desfazer-se do escravo robusto
que o levava todos os dias aos banhos, o colocava na água, lavava, vestia e
voltava a meter na cama. ‘Já não vou
precisar dele’, previra o defunto duas semanas antes de entrar em agonia,
adivinhando que o seu fim estava próximo. Depois de vender o escravo, ordenou à
Formosíssima
que comprasse o tecido e fizesse o vestido. ‘Ser-te-á necessário para encontrares um novo marido’, dissera-lhe.
Nessa altura, ela não retorquira. Sabia bem que era inútil discutir com
Aben Ahmad, embora tivesse decidido que se ele morresse nunca mais voltaria a
casar. Estas memórias causavam-lhe desgosto e raiva. Pensou, então, ir passear pelo
mercado, como fazia sempre todas as manhãs de sábado. O seu desespero e a raiva
incitavam-na a sair e a ir até lá, mas reteve-a o temor de que pudessem pensar
mal dela e talvez sussurrar: “Olhem, ali vai a Formosíssima com um vestido
novo, enquanto o aleijado Aben Ahmad ainda está quente no túmulo”. Isto
parecia-lhe assustador e desmesurado, especialmente porque ninguém sabia que
tinha jurado ao seu marido, no leito de morte, que colocaria o vestido novo no
dia a seguir ao funeral.
Judit também se sentia angustiada por descobrir que, sob o manto do seu
desgosto, se escondia um lampejo brilhante de esperança e um incipiente toque
de alegria. Tentava evitá-los, mas um prazer reluzente, impercetível e ambíguo
misturava-se com os sentimentos de injustiça e de solidão. Então, pensou que a
culpa era do vestido e, deste modo, sentiu um certo alívio. ‘Foi um capricho seu, disse a si mesma. Nunca
quis comprar o tecido nem fazê-lo. Não teria sido melhor, perdoai-me, meu Deus,
vestir roupas velhas e cobrir a cabeça com cinzas?’, Mas as promessas
feitas na hora da morte são sagradas e, embora isso seja do conhecimento geral,
neste caso, esta promessa era desconhecida das pessoas. Não havia uma única
testemunha que pudesse afirmar que o vestido não era um desejo seu, mas sim do
defunto.
Enredada nestes pensamentos, Judit sentia-se prisioneira, como tantas vezes
ao longo da sua vida. Como se tinha sentido desde o momento em que o seu pai,
Abdias ben Maimun, metera na cabeça que ela se deveria casar com Aben Ahmad e
mais nenhum outro, porque estava convencido de que ele era o único que poderia
fazê-la feliz. Tivera uma premonição, uma espécie de sinal, no dia em que uma cegonha lhe c.... na
cabeça, quando passava em frente à porta do seu futuro genro, e este se
ofereceu gentilmente para lhe limpar a sujidade, ao mesmo tempo que aproveitava
para lhe pedir a filha em casamento. ‘Nada neste mundo acontece por acaso,
declarou Abdias. Um sinal dos Céus não deve ser ignorado’. E ninguém foi capaz
de o convencer que era uma loucura casar uma rapariga de dezasseis anos,
virgem, tão bela que podia aspirar a um pretendente melhor, com um homem tão
comum e banal como Aben Ahmad, que ganhava avida a colocar telhas; um pedreiro
maduro, fraco e calado, que caiu do beiral de um telhado pouco depois do
casamento, ficando inútil para tudo, até mesmo para os esforços que o amor
exige.
Judit quase não tinha dormido durante a noite, dando voltas a estas memórias
na sua cabeça, e agora, embora o seu cotação palpitasse de tristeza, começava a
sentir a fadiga a vencê-la e cerravam-se-lhe os olhos na frescura e no silêncio
debaixo da figueira.
Os sonhos arrebataram-na por um momento e a sua mente pareceu dissolver-se,
feliz, no nada, mas uma voz estridente e desagradável depressa a acordou:
- Judit! Onde estás, rapariga?
Olhou para a rua poeirenta e viu a sua velha cunhada, Tova, que se aproximava,
caminhando com dificuldade apoiada num bastão de castanheiro.
-Judit! – continuava a gritar. –
Vem depressa, que estou à porta! A Formosíssima abandonou o seu
agradável refúgio com desagrado, mas não o demonstrou. - Não grite, Tova. Estou aqui, junto à figueira.
[…]
- Não se preocupe com esta viúva
- respondeu irritada. – Deus cuidará de mim.
- E sem casa! Sem ter sequer
casa! - exclamou Tova, fingindo enxugar com o véu as lágrimas que não parava de
deitar. - Hã?... Sem casa?... Perguntou
Judit completamente confusa. - Sim, minha irmã, sem casa, sussurrou a cunhada
com voz fraca. - O que diz?! Esta é a minha casa! Tova levantou-se e pôs-se
diante dela. A sua expressão de aflição tornara-se agora dura e arrogante.
Disse: - Nada disso! Não sabes que esta casa era do meu pai? Deixou-o bem claro
perante o cádi: o meu falecido irmão recebia-a apenas a título de empréstimo,
enquanto vivesse.
[…]
- Nada! Nada me resta deste
casamento! Nem marido, nem filhos, nem casa! Maldita! Maldita cegonha! Maldita
cegonha! Maldita cegonha! Maldita cegonha!... – repetia Judit». In Jesús
Sánchez Alalid, Alcazaba, Ediciones Planeta, 2012, A Última Muralha, Mouros,
Cristãos e Judeus unidos pelo Direito à Liberdade, Marcador Editora, 2012, ISBN
-978-989-8470-57-7.
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