“Por que semelhante amor, qual elrei Pedro ouve a dona Enes, raramente
he achado em alguuma pessoa”. In Fernão Lopes.
De profundis clamo ad te, domine
«Depois dos quarenta anos entra num homem o gelo da idade, pensa Álvaro
Pais enquanto as suas mãos percorrem numa carícia friorenta o gibão que o cinge
e cujo tecido lhe parece demasiado fino. O fogo da lareira não consegue aquecer
a sala. Ou sou eu que não consigo aquecer, rumina sombriamente enquanto acena a
um dos moços-de-câmara, que logo se apressa a lançar um tofo de carvalho sobre
as achas que se consumiram e formam agora um pequeno leito de brasas bom para
atear novo tronco.
Mas, prossegue o chanceler no discurso silencioso que tem consigo, se
neste dia o meu corpo não aquece sei eu bem a razão e não cabe doer-me com a
idade. Hoje, não é o seu frio que me arrepia nem são os anos que me pesam.
Ainda não. Hoje este frio é de ansiedade, porque eles hão-de chegar.
É esta certeza que lhe arrefece o sangue. Há já dois dias que vieram
mensageiros suados e exaustos, montando cavalos cobertos de espuma, com novas
de Castela que somente diziam: é feita a vontade de El-Rei de Portugal.
Nada mais os homens sabiam, tal a pressa de quem os enviara, contudo cabe
esperar que chegarão em breve. E há-de ser hoje, repete Álvaro Pais a si mesmo.
Sei-o, sinto-o.
El-Rei também o sabe, ou também o sente. Li-lho nos olhos, que esta
manhã eram raiados de vermelho e pareciam arder. Se tarda tanto na montaria é
porque não lhe sofre a ânsia ficar-se entre as paredes da alcáçova. Porém não
andará longe da cidade e quando houver sinal logo será aqui. Como a pontuar-lhe
o pensamento, soam, na distância, os toques das longas. Álvaro Pais estremece,
o corpo sacudido por novo arrepio. Bem o dizia eu ou bem o pensava. Não foi
muito longe de Santarém. A caça que o atrai não corre pelos campos, há-de
quedar-se neste castelo, à sua espera. E eu também, diz ainda para si mesmo. Eu
também aqui me quedo à espera, para tentar... O quê?
Sacode a cabeça num gesto de irritação preocupada. Agora, incomoda-o o
olhar estudadamente inexpressivo e atento dos dois moços-de-câmara, que seguem
os seus movimentos. Despede-os com um gesto do braço. Logo que saem, inspira profundamente,
retém o ar por instantes e depois expele-o tentando imaginar que os cuidados do
momento o abandonam, transportados naquele longo suspiro. Assim pudessem desaparecer
todos os cuidados!
Senta-se num escabelo, procura o apoio da parede para repousar as
costas. Sente o frio, outra vez o frio, da pedra que lhe trespassa o gibão e o
pelote e lhe toca a pele num contacto duro. Mas não, insiste para si mesmo; não
é a pedra nem é a idade, é este constante cuidado dentro de mim.
É bom servir um bom rei que tanto olha pelos seus, e tão generoso que
usa dizer: afrouxai-me a cinta por que se me alargue o corpo para mais
espaçosamente eu poder dar. E com isto, mau grado acrescentar sempre o seu tesouro,
fá-lo com bom governo, sem agravar o povo. Um bom rei e bem-amado, por certo.
Contudo, um bom rei deve ter boa fama e palavra inteira. Um bom rei jamais
quebra os seus juramentos… Porque ele jurou. Ele jurou e eu estava l, vi-o e
ouvi-o. Foi num dia como hoje, recorda o chanceler, fechando os olhos. Foi num
dia como hoje, de sol e de vento». In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos
Prazeres, Edições ASA, 1997, ISBN 972-41-1822-3.
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