sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Inês de Portugal. Pequenos Prazeres. João Aguiar. «Há já dois dias que vieram mensageiros suados e exaustos, montando cavalos cobertos de espuma, com novas de Castela que somente diziam: “é feita a vontade de El-Rei de Portugal”»

jdact e wikipedia

Por que semelhante amor, qual elrei Pedro ouve a dona Enes, raramente he achado em alguuma pessoa”. In Fernão Lopes.

De profundis clamo ad te, domine
«Depois dos quarenta anos entra num homem o gelo da idade, pensa Álvaro Pais enquanto as suas mãos percorrem numa carícia friorenta o gibão que o cinge e cujo tecido lhe parece demasiado fino. O fogo da lareira não consegue aquecer a sala. Ou sou eu que não consigo aquecer, rumina sombriamente enquanto acena a um dos moços-de-câmara, que logo se apressa a lançar um tofo de carvalho sobre as achas que se consumiram e formam agora um pequeno leito de brasas bom para atear novo tronco.
Mas, prossegue o chanceler no discurso silencioso que tem consigo, se neste dia o meu corpo não aquece sei eu bem a razão e não cabe doer-me com a idade. Hoje, não é o seu frio que me arrepia nem são os anos que me pesam. Ainda não. Hoje este frio é de ansiedade, porque eles hão-de chegar.
É esta certeza que lhe arrefece o sangue. Há já dois dias que vieram mensageiros suados e exaustos, montando cavalos cobertos de espuma, com novas de Castela que somente diziam: é feita a vontade de El-Rei de Portugal. Nada mais os homens sabiam, tal a pressa de quem os enviara, contudo cabe esperar que chegarão em breve. E há-de ser hoje, repete Álvaro Pais a si mesmo. Sei-o, sinto-o.
El-Rei também o sabe, ou também o sente. Li-lho nos olhos, que esta manhã eram raiados de vermelho e pareciam arder. Se tarda tanto na montaria é porque não lhe sofre a ânsia ficar-se entre as paredes da alcáçova. Porém não andará longe da cidade e quando houver sinal logo será aqui. Como a pontuar-lhe o pensamento, soam, na distância, os toques das longas. Álvaro Pais estremece, o corpo sacudido por novo arrepio. Bem o dizia eu ou bem o pensava. Não foi muito longe de Santarém. A caça que o atrai não corre pelos campos, há-de quedar-se neste castelo, à sua espera. E eu também, diz ainda para si mesmo. Eu também aqui me quedo à espera, para tentar... O quê?
Sacode a cabeça num gesto de irritação preocupada. Agora, incomoda-o o olhar estudadamente inexpressivo e atento dos dois moços-de-câmara, que seguem os seus movimentos. Despede-os com um gesto do braço. Logo que saem, inspira profundamente, retém o ar por instantes e depois expele-o tentando imaginar que os cuidados do momento o abandonam, transportados naquele longo suspiro. Assim pudessem desaparecer todos os cuidados!
Senta-se num escabelo, procura o apoio da parede para repousar as costas. Sente o frio, outra vez o frio, da pedra que lhe trespassa o gibão e o pelote e lhe toca a pele num contacto duro. Mas não, insiste para si mesmo; não é a pedra nem é a idade, é este constante cuidado dentro de mim.
É bom servir um bom rei que tanto olha pelos seus, e tão generoso que usa dizer: afrouxai-me a cinta por que se me alargue o corpo para mais espaçosamente eu poder dar. E com isto, mau grado acrescentar sempre o seu tesouro, fá-lo com bom governo, sem agravar o povo. Um bom rei e bem-amado, por certo.
Contudo, um bom rei deve ter boa fama e palavra inteira. Um bom rei jamais quebra os seus juramentos… Porque ele jurou. Ele jurou e eu estava l, vi-o e ouvi-o. Foi num dia como hoje, recorda o chanceler, fechando os olhos. Foi num dia como hoje, de sol e de vento». In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos Prazeres, Edições ASA, 1997, ISBN 972-41-1822-3.

Cortesia de ASA/JDACT