Literatura, teoria e
cultura
Argumento
«O debate cada vez menos
enfático em torno dos estudos literários tem sido acompanhado por uma crescente
indiferenciação teórica. A afluência contemporânea de discursos e de
metadiscursos parece inviabilizar qualquer abordagem sumária da aparelhagem
conceptual actualmente em uso nos diversos departamentos de Letras ou de
Ciências Humanas e Sociais. O que se propõe não é exactamente uma cartografia
instantânea de um território tão minado como o dos pronunciamentos teórico-literários
das últimas décadas. O propósito é bem mais restrito, pretende sobretudo
produzir um conjunto de inferências críticas consideradas relevantes para o
curso das leituras a fazer nos próximos capítulos. As inferências em causa
serão produzidas a partir do comentário da passagem paradigmática do campo da
literatura, o referente tradicional dos estudos literários, para o terreno da
cultura, um termo que no contexto da viragem culturalista, entretanto já em
fase de balanço, tem sido mobilizado para explicar quase tudo o que se move nos
arredores do horizonte académico. Mas a referência ao trânsito da literatura
para a cultura interessa, antes de mais, pelo facto de este cultural turn 18 potenciar
uma configuração, a partir da qual pretendo investir a crítica, enquanto inscrição, com as propriedades (pós)teóricas
e (pós)culturalistas que constituem o legado mais consequente dos
diversos debates ocorridos nas últimas décadas.
NOTA: O conceito tem já
tradição crítica, sucedendo ao linguistic
turn associado ao projecto estruturalista dos anos sessenta e
setenta. A deriva culturalista passou já a fase de expansão, organizada a
partir das suas raízes anglófonas. Hoje é já objecto de acentuada normalização crítica,
através da edição de uma série de monografias e de publicações periódicas, as
quais assumem nominalmente esta passagem, em vários espaços nacionais. Fredric
Jameson, um dos nomes que mais intensamente vem ordenando as incidências do
capitalismo tardio no campo cultural, chamou explicitamente a uma das suas
últimas colectâneas The Cultural Turn. A Nova História Cultural expôs num
manual recente as consequências e o futuro próximo do alinhamento
interdisciplinar do culturalismo […]
Isto significa
igualmente que a teoria se tem vindo a disponibilizar como capital académico
para apropriações cada vez mais divergentes, inclusive para empreendimentos
algo regressivos, por exemplo, quando a deriva cultural se reaproximou de
protocolos interpretativos de teor impressionista oubiográfico. A tematização
da viragem culturalista, beneficiando já de certo distanciamento crítico,
permite expor de modo particularmente visível alguns aspectos importantes para
o estudo da época e da textualidade e do debate.
Refiram-se aspectos como
a apropriação mimético-identitária dos textos, o problema das interpretações
referenciais e a complexidade de uma argumentação em torno do valor literário.
Além de enfatizar a divergência entre as leituras formalistas e anti-formalistas,
duas formas de perspectivar o literário que a crítica tem vindo a apresentar de
modo excessivamente dual, este conjunto de questões é diversamente solicitado
pela textualidade de Setecentos e pelo lugar que esta não ocupa na História da Literatura Portuguesa. As letras
deste período foram marcadas por uma forte codificação estilística e retórica,
mas também pela aparição autoral, por desígnios celebratórios, didácticos ou
polemistas que convém ter em conta. Por esta razão, o programa crítico a
convocar deverá ser capaz de fazer a mediação entre interpretações retoricistas
e interpretações contextualistas, entre modalidades de leitura demasiado entrincheiradas
na auto-referencialidade da linguagem, como as praticadas pelo imanentismo crítico
de tipo jakobsoniano, e a adopção de um contextualismo linear». In Fernando
Matos Oliveira, Poesia e Metromania, Inscrições
Setecentistas, 1750-1820, Dissertação de Doutoramento em Letras, na área de
Línguas e Literaturas Modernas, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 2008.
Cortesia da Universidade
de Coimbra/JDACT