O Legado Romântico
«[…] Victor Hugo sobre a
fusão contrastante do grotesco e do sublime, que combinava a observação dos
costumes e a intenção moralizadora, próprias da comédia, com as situações
patéticas e a expressão exaltada dos sentimentos, características do drama
romântico. Dois textos de 1856, que mutuamente se respondem, um estudo sobre o
teatro de Mendes Leal, incluído por Ernesto Biester na sua Viagem pela Literatura Contemporânea,
e o prefácio escrito por aquele para a comédia-drama A Redenção, do segundo, nesse ano estreada no Teatro
Nacional, definem, em termos significativos, as coordenadas estéticas deste
pseudorealismo.
Dizia Mendes Leal:
- ‘A comédia, que não exclui as lágrimas, que sabe aliar a ironia com a veemência, o sarcasmo acerbo com a eloquência audaz, as delicadezas da sensibilidade com os reptos do entusiasmo, que não gasta monotonamente uma corda única da atenção e do coração, mas faz vibrar todas, tirando de cada qual o seu som, é inquestionavelmente o género, vário e multíplice, que mais se quadra com o espírito móbil, perscrutador e inquieto de uma sociedade que é toda ela acção. Este género (...), aproximando-se da realidade sem deixar de ser ideia, abraça, no seu complexo, a vida esmaltada de dores e júbilos, alternada de lágrimas e risos, entremeada de festas ruidosas e martírios profundos, tudo às vezes mesclado e misto; tudo sobressaindo em relevo pelo mútuo contraste, (...) tudo, em suma, concorrente à acção, ao drama, como lhe chamavam os gregos, à acção tal como a sociedade a oferece em exemplo ao teatro, tal como o teatro a deve recambiar em cópia e lição à sociedade’.
Esta teoria especular
da literatura, meramente mecânica sob o aspecto estilístico, idealista do ponto
de vista ideológico, é retomada por Ernesto Biester, quando escreve que o
teatro deve ser a reprodução verdadeira dos costumes contemporâneos, da vida do
nosso tempo, da sociedade actual; e o autor de Pedro que também já era, então, o de Os Homens de Mármore e O Homem de Ouro, mostrava-se,
segundo Biester, especialmente apetrechado para se aproximar desse modelo
dramático, pois sabe:
- onde a sátira acaba, e onde a ofensa começa, sabe que se é um direito ferir o vício, é um dever respeitar a sociedade;
- sabe fazer rir e fazer chorar;
- ora moteja com o riso leve e de bom gosto, ora fulmina a censura que abala;
- umas vezes castiga pelo ridículo, outras comove pela paixão;
- entrelaça, como no mundo se vê, a comédia e o drama, e de ambos tira elementos de ensino e exemplo.
As citações que
precedem, oriundas dos dois representantes mais autorizados do nosso drama
de actualidade, esclarecem-nos inteiramente quanto às suas
características fundamentais, aos seus propósitos e aos seus limites. Os
autores invocados por Mendes Leal logo denunciam as origens românticas
do género que, por outro lado, a almejada fusão da sensibilidade e da ironia
crítica não deixa de evidenciar. A comédia-drama da Regeneração
portuguesa, tal como a comédia-séria da Restauração e do
2.º Império franceses, é ainda uma variação do melodrama romântico, na
sequência do drama histórico, o exemplo de Sardou é concludente,
derivada da mesma visão dicotómica e mecanicista do mundo. Por isso, as peças
integradas nesta tendência reconduziam-se invariavelmente a dois ou três
esquemas estereotipados que as tornavam indistinguíveis umas das outras, conflitos
abstractos entre a honra e o dever, entre o indivíduo e a sociedade, entre a
aristocracia decadente e a classe trabalhadora, alicerçados sobre
oposições simplistas e incarnados por personagens convencionais que se
exprimiam numa linguagem convencional.
Demais, a intenção
moralizadora inerente ao drama de actualização detinha-se,
prudentemente, nos limites do respeito pela sociedade, que em
termos explícitos Ernesto Biester preconizava. Daí o tom paternalista
que nesses dramas se adoptava em relação ao operariado, retoricamente
enaltecido como os soldados obscuros das modernas lutas da inteligência,
a nova
aristocracia, a realeza do século; daí o carácter
profundamente conservador e reaccionário, sob uma aparência humanitária e
socializante, de todo este teatro, tipicamente reflexivo de uma mentalidade
pequenoburguesa, a que a simples evocação de alguns dos títulos:
- Fortuna e Trabalho e Os Operários, de Biester;
- A Pobreza Envergonhada e A Escala Social, de Mendes Leal;
- Dois Mundos, Trabalho e Honra, Aristocracia e Dinheiro, de César de Lacerda;
- A Máscara Social, de Alfredo Hogan;
- As Glórias do Trabalho, de Leite Bastos.
Suficiente para evidenciar
a sua origem e limites burgueses, confirmando assim o acertado juízo de Henri
Lefebvre, para quem o melodrama é a
forma teatral que tem mais imediatas relações com a estrutura e a vida real, a
vida quotidiana dos homens na época burguesa». In Luiz Rebello, O Teatro
Naturalista e Neo-Romântico (1870-1910, Série Literatura, volume 16, Instituto
de Cultura Portuguesa, Livraria Bertrand, 1978, Centro Virtual Camões,
Instituto Camões.
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Camões/JDACT