quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O Teatro Naturalista e Neo-Romântico (1870-1910). Luiz Rebello. «… onde a sátira acaba, e onde a ofensa começa, sabe que se é um direito ferir o vício, é um dever respeitar a sociedade. Sabe fazer rir e fazer chorar. Ora moteja com o riso leve e de bom gosto, ora fulmina a censura que abala…»

jdact e cortesia de wikipedia

O Legado Romântico
«[…] Victor Hugo sobre a fusão contrastante do grotesco e do sublime, que combinava a observação dos costumes e a intenção moralizadora, próprias da comédia, com as situações patéticas e a expressão exaltada dos sentimentos, características do drama romântico. Dois textos de 1856, que mutuamente se respondem, um estudo sobre o teatro de Mendes Leal, incluído por Ernesto Biester na sua Viagem pela Literatura Contemporânea, e o prefácio escrito por aquele para a comédia-drama A Redenção, do segundo, nesse ano estreada no Teatro Nacional, definem, em termos significativos, as coordenadas estéticas deste pseudorealismo.
Dizia Mendes Leal:
  • ‘A comédia, que não exclui as lágrimas, que sabe aliar a ironia com a veemência, o sarcasmo acerbo com a eloquência audaz, as delicadezas da sensibilidade com os reptos do entusiasmo, que não gasta monotonamente uma corda única da atenção e do coração, mas faz vibrar todas, tirando de cada qual o seu som, é inquestionavelmente o género, vário e multíplice, que mais se quadra com o espírito móbil, perscrutador e inquieto de uma sociedade que é toda ela acção. Este género (...), aproximando-se da realidade sem deixar de ser ideia, abraça, no seu complexo, a vida esmaltada de dores e júbilos, alternada de lágrimas e risos, entremeada de festas ruidosas e martírios profundos, tudo às vezes mesclado e misto; tudo sobressaindo em relevo pelo mútuo contraste, (...) tudo, em suma, concorrente à acção, ao drama, como lhe chamavam os gregos, à acção tal como a sociedade a oferece em exemplo ao teatro, tal como o teatro a deve recambiar em cópia e lição à sociedade’.
Esta teoria especular da literatura, meramente mecânica sob o aspecto estilístico, idealista do ponto de vista ideológico, é retomada por Ernesto Biester, quando escreve que o teatro deve ser a reprodução verdadeira dos costumes contemporâneos, da vida do nosso tempo, da sociedade actual; e o autor de Pedro que também já era, então, o de Os Homens de Mármore e O Homem de Ouro, mostrava-se, segundo Biester, especialmente apetrechado para se aproximar desse modelo dramático, pois sabe:
  • onde a sátira acaba, e onde a ofensa começa, sabe que se é um direito ferir o vício, é um dever respeitar a sociedade;
  • sabe fazer rir e fazer chorar;
  • ora moteja com o riso leve e de bom gosto, ora fulmina a censura que abala;
  • umas vezes castiga pelo ridículo, outras comove pela paixão;
  • entrelaça, como no mundo se vê, a comédia e o drama, e de ambos tira elementos de ensino e exemplo.
As citações que precedem, oriundas dos dois representantes mais autorizados do nosso drama de actualidade, esclarecem-nos inteiramente quanto às suas características fundamentais, aos seus propósitos e aos seus limites. Os autores invocados por Mendes Leal logo denunciam as origens românticas do género que, por outro lado, a almejada fusão da sensibilidade e da ironia crítica não deixa de evidenciar. A comédia-drama da Regeneração portuguesa, tal como a comédia-séria da Restauração e do 2.º Império franceses, é ainda uma variação do melodrama romântico, na sequência do drama histórico, o exemplo de Sardou é concludente, derivada da mesma visão dicotómica e mecanicista do mundo. Por isso, as peças integradas nesta tendência reconduziam-se invariavelmente a dois ou três esquemas estereotipados que as tornavam indistinguíveis umas das outras, conflitos abstractos entre a honra e o dever, entre o indivíduo e a sociedade, entre a aristocracia decadente e a classe trabalhadora, alicerçados sobre oposições simplistas e incarnados por personagens convencionais que se exprimiam numa linguagem convencional.
Demais, a intenção moralizadora inerente ao drama de actualização detinha-se, prudentemente, nos limites do respeito pela sociedade, que em termos explícitos Ernesto Biester preconizava. Daí o tom paternalista que nesses dramas se adoptava em relação ao operariado, retoricamente enaltecido como os soldados obscuros das modernas lutas da inteligência, a nova aristocracia, a realeza do século; daí o carácter profundamente conservador e reaccionário, sob uma aparência humanitária e socializante, de todo este teatro, tipicamente reflexivo de uma mentalidade pequenoburguesa, a que a simples evocação de alguns dos títulos:
  • Fortuna e Trabalho e Os Operários, de Biester;  
  • A Pobreza Envergonhada e A Escala Social, de Mendes Leal; 
  • Dois Mundos, Trabalho e Honra, Aristocracia e Dinheiro, de César de Lacerda; 
  • A Máscara Social, de Alfredo Hogan; 
  • As Glórias do Trabalho, de Leite Bastos.
Suficiente para evidenciar a sua origem e limites burgueses, confirmando assim o acertado juízo de Henri Lefebvre, para quem o melodrama é a forma teatral que tem mais imediatas relações com a estrutura e a vida real, a vida quotidiana dos homens na época burguesa». In Luiz Rebello, O Teatro Naturalista e Neo-Romântico (1870-1910, Série Literatura, volume 16, Instituto de Cultura Portuguesa, Livraria Bertrand, 1978, Centro Virtual Camões, Instituto Camões.

Cortesia do Instituto Camões/JDACT