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Resumo
Concani, tâmul,
tupi, quimbundo, quicongo, suailí, macua… todo este novo mundo linguístico
abriu-se aos olhos e ouvidos dos portugueses quase ao mesmo tempo em que são
publicadas as duas primeiras gramáticas do nosso vernáculo, Fernão Oliveira, Gramática da linguagem portuguesa,
1536; João de Barros, Gramática
da língua portuguesa, 1540. Mas foi no decurso do século XVII que se
desencadeou o processo de gramaticalização de línguas asiáticas, ameríndias e
africanas, com gramáticas e dicionários, inclusive catecismos, de missionários franciscanos e
jesuítas, sobretudo. Analisar o processo de gramaticalização portuguesa de
línguas extra-europeias (nem todas descritas), examinando alguns testemunhos
destes gramáticos missionários.
Linguística missionária
«É em 2004 que pela primeira vez é
apresentado no trabalho de Klaus Zimmermann intitulado “La construcción del objeto de la
historiografía de la lingüística misionera”, o quadro teórico e os
pressupostos epistemológicos da área de investigação actualmente conhecida por
linguística missionária. Trata-se de uma recente disciplina ou subdisciplina
linguística, herdeira da tradição filológica, que se foi paulatinamente
constituindo como área de investigação específica dentro da historiografia
linguística, sobretudo a partir dos anos noventa do século XX. Desde então,
tem-se acentuado o interesse de investigadores de todo o mundo pelo domínio,
conteúdos e escopo da linguística
missionária; e multiplicaram-se, quase ao ritmo de um por cada ano, os
colóquios e congressos internacionais sobre a mesma temática,
analisada em função de variantes cronológicas e geográficas. Os trabalhos
pioneiros de orientalistas e especialistas em línguas africanas e ameríndias
são aqui referência obrigatória. Com base neste acervo bibliográfico e em
fontes da memória linguística, os estudos sobre as chamadas línguas ‘exóticas’
levados a cabo de forma sistemática no último vinténio, permitem já fixar
algumas características da linguística missionária, encontrar a sua
configuração própria como disciplina historiográfica e captar as correntes
subterrâneas de um pensamento linguístico que é também veículo de uma
ideologia. Considera-se manifestação da actividade linguística missionária o
conjunto de obras gramaticais, entre
gramáticas e artes, vocabulários e dicionários, catecismos e cartilhas,
produzidas em
territórios evangelizados por missionários europeus. O quando, onde e porquê de toda esta produção gramatical, ao mesmo
tempo que se analisa o como
foi elaborada, atendendo às ideias linguísticas subjacentes, são alguns dos
aspectos do perfil da linguística missionária, que traçou Klauss Zimmermann.
NOTA: Em
geral, as cartilhas (ou
cartinhas) apresentam duas partes essenciais; a primeira é uma propedêutica da
leitura, com um alfabeto e um
silabário, a segunda
é de doutrinação religiosa e enuncia os cânones da doutrina religiosa. Estes
instrumentos de alfabetização serviam portanto as finalidades específicas da
empresa evangélica, ao mesmo tempo que se adequavam à aquisição de
conhecimentos nos bancos escolares.
Assim,
segundo este mesmo investigador, importa considerar os seguintes aspectos,
não exaustivos, na delimitação do campo historiográfico
da linguística missionária, conforme Zimmermann
2004:
- Protagonistas. Autores:
linguistas-evangelizadores. Membros do clero, missionários de
diversas ordens religiosas:Jesuítas
(os mais activos no campo da missionação);
Franciscanos ;
Dominicanos (com apreciável actividade em Moçambique) ;
Agostinhos.
- Ideologia dominante. Religião cristã.
- Propósito
principal. Evangelização
e, supletivamente, alfabetização na língua europeia. Propósitos
derivados (medidas profilácticas):Estudo
gramatical de línguas extra-europeias;
Redacção de catecismos (registos bilingues e trilingues) ;
Traduções da Bíblia e de catecismos latinos.
- Materiais
didácticos elaborados. Instrumentos de
evangelização (impressos e
manuscritos). A codificação
gramatical era sobretudo de natureza didáctica:Artes /
Gramáticas;
Dicionários / Vocabulários ;
Catecismos (também conhecidos, na linguística missionária portuguesa, por cartilhas ou cartinhas, manuais de iniciação à leitura e ao dogma cristão).
Outras obras não gramaticais. Cartas, textos históricos, literatura religiosa;
Destinatários, outros missionários. Os materiais didácticos eram elaborados visando a formação do pessoal missionário nos idiomas locais;
[…]
- Quadro
histórico-político e linguístico:Períodos
colonial e pós-colonial (séculos XVI-XIX);
Momento a quo , 1492 (Gramática de la lengua castellana de Antonio de Nebrija).
- Quadro
geográfico
(espaços de missionação diferentes do ponto de vista histórico, cultural e
linguístico):Territórios
de África;
Territórios da Ásia ;
Territórios da América.
O processo de gramaticalização
É
conhecida a forma como decorreram os primeiros contactos linguísticos com povos
da costa oriental africana onde os portugueses aportaram a caminho da Índia, em
1498. Passado o Cabo da Boa Esperança,
a armada de Vasco da Gama encontrou na baía de Inhambane populações
estrangeiras que só um especialista em línguas pôde entender:
“(...) vëdo
Vasco da gama q mostrauã ser gëte mansa mãdou sair ë terra
hü dos nossos chamado Martim afonso q sabia
muytas lïguas de negros & coele outro homë, & forão ambos bem
agasalhados daqla gëte”. No contexto da produção editorial da
época dos Descobrimentos, esta obra de Castanheda, que é um dos primeiros
relatos da actividade dos portugueses no Oriente, foi publicada pela primeira
vez entre 1551e 1561, e logo parcialmente traduzida para francês em 1553".
Continuando
a travessia do Índico, relata a mesma narrativa a chegada ao rio dos Bons Sinais, hoje rio de Quelimane, cujas
populações “(...) não falauão se não por acenos, por não entenderem nenhü dos
lingoas que Vasco da Gama leuaua”. No último porto da costa moçambicana,
a Ilha de Moçambique, tiveram
os portugueses o primeiro contacto com povos de língua árabe, que era um dos
idiomas de comunicação no oceano Índico ocidental. A aproximação linguística
com estes povos que comerciavam no Índico ocorreu, mais uma vez, por intermédio
de um intérprete:
'Estes
homës como chegarão aos nauios entrarã dëtro muy seguramëte como q
conhecerão os Portugueses, & assi cõuersarão logo coeles, & falauão
arauia: no q se conheceo q
erão mouros. Vasco da gama lhes mandou logo dar de comer: & eles comerão e
beberã: e pergütados per hü Fernão Martins q sabia arauia,
que terra era aqla: disserão que era hüa ilha do senhorio
dü grande rey q estaua a diãte: & chamauase a ilha
Moçãbique, pouoada de mercadores q tratauão com
mouros da Índia'».
In Maria
do Céu Fonseca, Universidasde de Évora, Historiografia
Linguística Portuguesa. O Processo de Gramaticalização de Línguas extra-europeias,
Oceano Índico, Versão
portuguesa adaptada de um texto que se apresentou no Colóquio Internacional
“Écriture et construction des langues dans le sud-ouest de l’Océan Indien” Faculté
des Lettres et des Sciences Humaines , Université de la Réunion, Revista de Letras, II, 2005,
Universidade de
Trás-os-Montes e Alto Douro.
Cortesia
da U. de TM e Alto Douro/JDACT