quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Historiografia Linguística Portuguesa. O Processo de Gramaticalização de Línguas extra-europeias, Oceano Índico. Maria do Céu Fonseca. «No contexto da produção editorial da época dos Descobrimentos, a obra de Castanheda é um dos primeiros relatos da actividade dos portugueses no Oriente, e foi publicada pela primeira vez entre 1551e 1561, e logo parcialmente traduzida para francês em 1553»



Cortesia de wikipedia

Resumo
Concani, tâmul, tupi, quimbundo, quicongo, suailí, macua… todo este novo mundo linguístico abriu-se aos olhos e ouvidos dos portugueses quase ao mesmo tempo em que são publicadas as duas primeiras gramáticas do nosso vernáculo, Fernão Oliveira, Gramática da linguagem portuguesa, 1536; João de Barros, Gramática da língua portuguesa, 1540. Mas foi no decurso do século XVII que se desencadeou o processo de gramaticalização de línguas asiáticas, ameríndias e africanas, com gramáticas e dicionários, inclusive catecismos, de missionários franciscanos e jesuítas, sobretudo. Analisar o processo de gramaticalização portuguesa de línguas extra-europeias (nem todas descritas), examinando alguns testemunhos destes gramáticos missionários.

Linguística missionária
«É em 2004 que pela primeira vez é apresentado no trabalho de Klaus Zimmermann intitulado “La construcción del objeto de la historiografía de la lingüística misionera”, o quadro teórico e os pressupostos epistemológicos da área de investigação actualmente conhecida por linguística missionária. Trata-se de uma recente disciplina ou subdisciplina linguística, herdeira da tradição filológica, que se foi paulatinamente constituindo como área de investigação específica dentro da historiografia linguística, sobretudo a partir dos anos noventa do século XX. Desde então, tem-se acentuado o interesse de investigadores de todo o mundo pelo domínio, conteúdos e escopo da linguística missionária; e multiplicaram-se, quase ao ritmo de um por cada ano, os colóquios e congressos internacionais sobre a mesma temática, analisada em função de variantes cronológicas e geográficas. Os trabalhos pioneiros de orientalistas e especialistas em línguas africanas e ameríndias são aqui referência obrigatória. Com base neste acervo bibliográfico e em fontes da memória linguística, os estudos sobre as chamadas línguas ‘exóticas’ levados a cabo de forma sistemática no último vinténio, permitem já fixar algumas características da linguística missionária, encontrar a sua configuração própria como disciplina historiográfica e captar as correntes subterrâneas de um pensamento linguístico que é também veículo de uma ideologia. Considera-se manifestação da actividade linguística missionária o conjunto de obras gramaticais, entre gramáticas e artes, vocabulários e dicionários, catecismos e cartilhas, produzidas em territórios evangelizados por missionários europeus. O quando, onde e porquê de toda esta produção gramatical, ao mesmo tempo que se analisa o como foi elaborada, atendendo às ideias linguísticas subjacentes, são alguns dos aspectos do perfil da linguística missionária, que traçou Klauss Zimmermann.

NOTA: Em geral, as cartilhas (ou cartinhas) apresentam duas partes essenciais; a primeira é uma propedêutica da leitura, com um alfabeto e um silabário, a segunda é de doutrinação religiosa e enuncia os cânones da doutrina religiosa. Estes instrumentos de alfabetização serviam portanto as finalidades específicas da empresa evangélica, ao mesmo tempo que se adequavam à aquisição de conhecimentos nos bancos escolares.

Assim, segundo este mesmo investigador, importa considerar  os seguintes aspectos, não exaustivos, na delimitação do campo historiográfico da linguística missionária, conforme Zimmermann 2004:
  • Protagonistas. Autores: linguistas-evangelizadores. Membros do clero, missionários de diversas ordens religiosas:Jesuítas (os mais activos no campo da missionação); 
    Franciscanos
    ; 
    Dominicanos (com apreciável actividade em Moçambique)
    ; 
    Agostinhos.
  • Ideologia dominante. Religião cristã.
  • Propósito principal. Evangelização e, supletivamente, alfabetização na língua europeia. Propósitos derivados (medidas profilácticas):Estudo gramatical de línguas extra-europeias; 
    Redacção de catecismos (registos bilingues e trilingues)
    ; 
    Traduções da Bíblia e de catecismos latinos.
  • Materiais didácticos elaborados. Instrumentos de evangelização (impressos e manuscritos). A codificação gramatical era sobretudo de natureza didáctica:Artes / Gramáticas; 
    Dicionários / Vocabulários
    ; 
    Catecismos (também conhecidos, na linguística missionária portuguesa, por cartilhas ou cartinhas, manuais de iniciação à leitura e ao dogma cristão). 

    Outras obras não gramaticais.
    Cartas, textos históricos, literatura religiosa;
    Destinatários,
    outros missionários. Os materiais didácticos eram elaborados visando a formação do pessoal missionário nos idiomas locais;
    […]
  • Quadro histórico-político e linguístico:Períodos colonial e pós-colonial (séculos XVI-XIX); 
    Momento a quo
    , 1492 (Gramática de la lengua castellana de Antonio de Nebrija).
  • Quadro geográfico (espaços de missionação diferentes do ponto de vista histórico, cultural e linguístico):Territórios de África; 
    Territórios da Ásia
    ; 
    Territórios da América.
O processo de gramaticalização
É conhecida a forma como decorreram os primeiros contactos linguísticos com povos da costa oriental africana onde os portugueses aportaram a caminho da Índia, em 1498. Passado o Cabo da Boa Esperança, a armada de Vasco da Gama encontrou na baía de Inhambane populações estrangeiras que só um especialista em línguas pôde entender:

“(...) vëdo Vasco da gama q mostrauã ser gëte mansa mãdou sair ë terra hü dos nossos chamado Martim afonso q sabia muytas lïguas de negros & coele outro homë, & forão ambos bem agasalhados daqla gëte. No contexto da produção editorial da época dos Descobrimentos, esta obra de Castanheda, que é um dos primeiros relatos da actividade dos portugueses no Oriente, foi publicada pela primeira vez entre 1551e 1561, e logo parcialmente traduzida para francês em 1553".

Continuando a travessia do Índico, relata a mesma narrativa a chegada ao rio dos Bons Sinais, hoje rio de Quelimane, cujas populações “(...) não falauão se não por acenos, por não entenderem nenhü dos lingoas que Vasco da Gama leuaua”. No último porto da costa moçambicana, a Ilha de Moçambique, tiveram os portugueses o primeiro contacto com povos de língua árabe, que era um dos idiomas de comunicação no oceano Índico ocidental. A aproximação linguística com estes povos que comerciavam no Índico ocorreu, mais uma vez, por intermédio de um intérprete:

'Estes homës como chegarão aos nauios entrarã dëtro muy seguramëte como q conhecerão os Portugueses, & assi cõuersarão logo coeles, & falauão arauia: no q se conheceo q erão mouros. Vasco da gama lhes mandou logo dar de comer: & eles comerão e beberã: e pergütados per hü Fernão Martins q sabia arauia, que terra era aqla: disserão que era hüa ilha do senhorio dü grande rey q estaua a diãte: & chamauase a ilha Moçãbique, pouoada de mercadores q tratauão com mouros da Índia'».

In Maria do Céu Fonseca, Universidasde de Évora, Historiografia Linguística Portuguesa. O Processo de Gramaticalização de Línguas extra-europeias, Oceano Índico, Versão portuguesa adaptada de um texto que se apresentou no Colóquio Internacional “Écriture et construction des langues dans le sud-ouest de l’Océan Indien” Faculté des Lettres et des Sciences Humaines , Université de la Réunion, Revista de Letras, II, 2005, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.

Cortesia da U. de TM e Alto Douro/JDACT