Pregado em S. Luís do Maranhão,
três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino. Vos
estis sal terrae. S. Mateus, V, l3.
António, para o sermão,
Encontra a igreja vazia.
Vai para o rio
E prega aos peixes!
Todos dão à cauda,
Brilhando ao Sol.
As carpas, em cardume,
Vieram todas à uma.
Estão de boca aberta
A escutar com atenção.
Nunca um sermão
Agradou tanto aos peixes!
(Continuação)
I
«Se a Igreja quer que preguemos de Santo
António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os outros
santos doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto. Os outros
santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo António foi sal da
terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no
pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar
deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja
tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino,
que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e
noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito
clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a
esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho
colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele,
vós o sabeis e eu por vós o sinto.
Isto suposto, quero hoje, à
imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não
aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os
demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: Senhora do mar; e posto que o
assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.
II
Enfim, que havemos de pregar hoje
aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades
de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador,
que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão
ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa mão falarei
hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus
parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.
Vos estis sal terrae. Haveis
de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas
propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e
preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as
pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as
de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar
o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem
cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu
lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja S. Basílio: Non carpere solum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in
illis, et quae prosequenda sunt imitatione: Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão
também que imitar e louvar. Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede
de pescar, Sagenae missae in mare,
diz que os pescadores recolheram os
peixes bons e lançaram fora os maus: Elegerunt
bonos in vasa, malos autem foras miserunt. E onde há bons e maus, há
que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza,
dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as
vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei
os vossos vícios. E desta
maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos,
que experimentá-las depois de mortos».
In Fundação C. Gulbenkian.
Cortesia de FCG/JDACT