«(…) O pequeno rei também assinou nessa mesma altura vários perdões de
penas por ter dormido com mulher
solteira (...), ficando a parte lesada livre de proceder legalmente para- a
reparação material da falta. A necessidade de poder contar com homens
na conquista de África, desde a tomada de Ceuta em 1415, fazia com que a justiça civil portuguesa fosse clemente no
julgamento da fornicação e do adultério, quando era cometido por homens. Como
no resto da cristandade, dormir com mulheres casadas era considerado em
Portugal ao mesmo tempo um pecado e um crime. Mas a tradicional pena de prisão,
evitada em Navarra com uma avultada multa, podia ser comutada se se aceitasse
fazer serviço em Ceuta durante dois a cinco anos.
No início de Julho de 1439,
o rei Afonso V e o seu irmão, o infante Fernando, foram levados ao palácio das
Alcáçovas de Lisboa. Ali, no final do mês, o rei assinou dois documentos que
levam a pensar que a rainha ponderava abandonar a quinta de Monte Olivete. O
primeiro, em benefício da parteira da rainha dona Leonor, que recebeu
uma mercê em trigo dos lucros do almoxarifado da cidade de Évora. O segundo,
a favor de um pedreiro, morador em Lisboa, e da sua mulher, que tinham
criado os filhos dos aios da falecida infanta Filipa; o que permite presumir
que os servidores dos infantes viviam sob o mesmo tecto que eles, enquanto os
seus próprios filhos eram criados por outras pessoas e noutro lugar.
Poucos dias depois, D. Leonor mudou-se com as filhas
para a quinta de Santo António dos Olivais, perto de Sacavém, outrora património
das rainhas portuguesas e agora propriedade da Câmara do arcebispo de Lisboa,
para onde fez levar os seus filhos varões. Entretanto, o infante Pedro
mandava espalhar por Lisboa que a rainha o difamava e que isso lhe provocava grande
abatimento. Quanto a D. Leonor, o
seu coração não tinha repouso com as mudanças e alvoroços que ocorriam todos os
dias em Lisboa. Até que, segundo o cronista Rui de Pina,
contemporâneo de Afonso V com palavras
irosas, e que não cabiam em sua prudencia, mansidão e virtudes, lançou fora de
sua casa duas donzellas (...) e assi não consentiu que fizesse parte da sua
casa outra donzela, sobrinha do capitão de Lisboa, por estarem vinculadas ao
infante D. Pedro.
Além de acusar essas jovens de espiar para o seu cunhado, Leonor concedeu
ao aio do rei alguns benefícios que prejudicavam os interesses dos mercadores
de Lisboa. Por causa disso, durante uma reunião na Câmara, os poucos partidários
da rainha chegaram a vias de facto com os seus opositores, que eram quase todos
os homens do povo com alguns ilustres da cidade.
D. Leonor corrigiu. Mas isso não melhorou a situação. O infante
Pedro fez saber que estava a considerar a possibilidade de deixar aquele pequeno cargo que lhe fora
concedido para se retirar para as suas terras, no ducado de Coimbra. Na
realidade, absteve-se de o fazer. Em vez disso, mandou chamar o irmão mais
novo, o infante João, duque de Beja, que residia em Alcácer do Sal, e
quando este chegou advertiu-o: Apesar
de a rainha ser muito virtuosa e discreta e amiga de Deus, nunca vi maior
vergonha e abatimento nosso, que devemos ser regidos por ela, pois é mulher e
ainda, estrangeira. Os problemas que a mãe de Joana de Portugal
enfrentava nessa altura eram habituais na vida das rainhas consortes da Idade
Média quando enviuvavam jovens. E a escolha do tutor do herdeiro menor de idade
transformava-se numa oportunidade para os varões da família tentarem aumentar a
sua influência, à custa da suposta incapacidade das mulheres para governar.
Situação que se agravava quando a consorte era estrangeira. Acontecera
precisamente o mesmo, em Castela a uma rainha consorte inglesa, tia de Leonor.
NOTA: Catalina de Lencastre, rainha consorte de Castela, regente e num
primeiro momento tutora do seu filho, Juan I de Castela; meia-irmã da rainha D.
Filipa de Portugal, defunta sogra da rainha D. Leonor de Portugal.
Só se tinham salvado as aparências. Depois de percorrer com os filhos
várias residências reais em busca de maior segurança, instalou-se em Alenquer.
Daí enviou uma carta circular às autoridades da capital e a outras cidades do
reino, na qual negava ter solicitado ajuda aos irmãos, os infantes de Aragão,
como se dizia, e pedia que respeitassem o testamento do marido. A Câmara de Lisboa
fez caso omisso desse pedido e convocou uma reunião durante a qual um
representante, baseando-se em episódios bíblicos e exemplos históricos,
argumentou que a regência não podia ser dada a uma mulher. Era a velha ideia
defendida desde os tempos de Aristóteles, uma das bases nas quais
assentava o pensamento filosófico naquela época. Cinco séculos antes de Cristo,
o mestre de Alexandre o Grande
afirmara que as mulheres não estavam capacitadas para se ocuparem dos assuntos
públicos, porque as irregularidades do ciclo menstrual tornava instável o seu
carácter. E também não serviam para ir à guerra porque corriam o perigo de ser
violadas e engravidar durante as campanhas. Daí que as lendárias amazonas
cortassem um peito, não apenas para disparar melhor o arco mas também como
rejeição à gestação e, portanto, à maternidade.
O discurso desse representante da cidade de Lisboa foi seguido de outro
que advertiu para o perigo de o rei ser criado por mulheres. No final foi decidido
que somente o infante Pedro deveria ocupar-se da regência. A decisão foi
comunicada à rainha, a qual respondeu que os membros da Câmara careciam de
autoridade para tal decisão, que só podia ser tomada pelos representantes dos
três Estados. No entanto, o duque de
Coimbra agradeceu a decisão da Câmara lisboeta e aceitou o cargo. Vividas
com ansiedade por parte de D. Leonor, estas questões, a educação
do herdeiro, a influência das mulheres na educação dos infantes e os critérios
de masculinidade que se consideravam necessários para que um homem pudesse ser
detentor da coroa, também fariam parte das futuras preocupações da sua filha, a
futura rainha de Castela. Alguns desses problemas estavam já na ordem do dia no
outro lado da fronteira, devido a uma trégua através da qual os infantes de Aragão
tinham conseguido expulsar da corte Álvaro de Luna. Alonso de Palencia,
autor de uma famosa crónica difamatória da rainha Joana, escreveria alguns anos
mais tarde: Enquanto durou a sua beleza
juvenil, a habilidade de Álvaro granjeou-lhe um poder em nada desprezável.
In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente
Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.
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