«Peniche é uma pacata cidade situada à beira-mar, poucos quilómetros a norte
de Lisboa. É tradicionalmente conhecida pela pesca e pelas delicadas rendas de bilros. Ainda me lembro do que
vi quando a visitei pela primeira vez com o meu pai. As mulheres do povo
sentavam-se então às portas das casas com os cochins de bilros à frente,
trabalhando incessantemente nessas rendas maravilhosas, enquanto esperavam pelos
maridos, que andavam à pesca no mar alto. As grandes ondas do oceano rebentavam
contra os rochedos e as grossas paredes do velho forte, construído sobre a pequena
península rochosa. Por detrás daquelas paredes estavam enclausurados muitos
homens, alguns ainda jovens, que tinham sacrificado as suas vidas por um ideal.
As pessoas da localidade iam e vinham nas suas azáfamas quotidianas, sem se aperceberem
das
vidas restritas e destroçadas daqueles que se encontravam dentro
daquelas espessas muralhas. Este velho e delapidado forte, construído há muitos
séculos pelos árabes, ainda antes de Portugal ser uma nação, servia
agora de prisão para reclusos políticos. Todos estes prisioneiros eram homens de grande qualidade moral e
intelectual que compartilhavam diferentes ideologias políticas. Havia entre eles republicanos e democratas,
comunistas, socialistas e até mesmo anarquistas. Eram todos homens de
extraordinária coragem que se tinham unido numa causa comum, a luta contra a
ditadura salazarista, que quase tinha transformado Portugal num enorme campo de
concentração. Lutavam pelas mais
elementares liberdades e direitos comuns.
Entre eles havia um grupo de goeses que tinham tomado parte na última revolução
para a libertação daquela colónia do jugo português. Fazendo parte desse grupo,
estava um velho amigo e colega de Lica.
Até poucos anos antes eu ignorava totalmente que houvesse uma luta de goeses
pela sua independência. Ninguém à minha volta parecia estar a par do que se passava.
Ninguém mesmo o poderia saber, pois o povo, em geral, era sempre deixado em
perfeita ignorância de tais assuntos, o que, aliás, era coisa fácil de manter,
um vez que a imprensa era censurada. Mas, à medida que ia tendo mais
conhecimento sobre a situação, através de Lica,
fui-me apercebendo, dolorosamente, da enorme injustiça cometida para com o seu
povo. A persistente e secular perseguição aos hindus, pela simples razão de
professarem uma religião diferente do catolicismo, era mesmo inacreditável. As
tradições e os costumes hindus eram considerados incivilizados pelos
portugueses e, evidentemente, eliminados a todo o custo.
Uns anos antes de sair dos Açores já tinha tido a minha primeira
experiência do que era a corrupção política quando o meu pai foi
temporariamente suspenso do ensino. Isso deu-se por ter tido a audácia de
publicar uns artigos em que mencionava certas irregularidades levadas a efeito
pelas autoridades locais. Sem o apoio da justiça, numa sociedade injusta, isto
deixou-nos com um sentimento de irremediável desespero. Mas este incidente, que
nos tinha parecido uma amarga experiência, não era nada comparável ao sofrimento
que Portugal tinha causado, ao longo do tempo, aos hindus de Goa.
A partir do momento em que visitámos pela primeira vez os nossos amigos
no forte decidimos que a nossa lua-de-mel seria ali mesmo, em Peniche, e que passaríamos
todo o tempo que nos fosse permitido na prisão com os nossos amigos reclusos.
Chegámos naquela sexta-feira à tarde. Deixámos as malas no primeiro hotel
decente que encontrámos e fomos de corrida para o forte, chegando mesmo a tempo
da ultima visita do dia. Os prisioneiros foram então chamados à nossa presença:
Inácio de Loiola, advogado, Tristão de Bragança Cunha, escritor; Laxmicant
Bhembre, professor, Purshotham Kakodkar, político, e Rama Hegde, médico, amigo
e colega de Lica. Vieram todos juntos
para nos felicitarem e logo de seguida, com grande surpresa nossa, convidaram-nos
para um almoço no dia seguinte, ali mesmo no forte, para festejar o nosso
casamento. Já tinham pedido e obtido o devido consentimento. Na manhã seguinte,
uns minutos antes das horas de visita, já lá estávamos à espera, junto ao
maciço portão que dava entrada ao forte. Quando, finalmente, entrámos, fomos
direitos à sala de recepção, como era costume. Desta vez, porém, tudo tinha
mudado. A sala já estava maravilhosamente preparada para a cerimónia, com uma
longa mesa coberta com uma toalha branca, lindamente enfeitada com flores.
No centro tinham colocado um bolo de noiva, sobre o qual estava
escrita, em açucar a palavra felicidades.
Que surpresa extraordinária, que linda ideia! Ficámos imensamente comovidos e
sem palavras que pudessem transmitir o que então sentíamos». In Edila
Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F.
Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.
A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de E. Tágide/JDACT