quinta-feira, 2 de maio de 2013

As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961. Edila Gaitonde. «Eram todos homens de extraordinária coragem que se tinham unido numa causa comum, a luta contra a ditadura salazarista, que quase tinha transformado Portugal num enorme campo de concentração. Lutavam pelas mais elementares liberdades e direitos comuns»

A primeira foto com sari depois do casamento
jdact

«Peniche é uma pacata cidade situada à beira-mar, poucos quilómetros a norte de Lisboa. É tradicionalmente conhecida pela pesca e pelas delicadas rendas de bilros. Ainda me lembro do que vi quando a visitei pela primeira vez com o meu pai. As mulheres do povo sentavam-se então às portas das casas com os cochins de bilros à frente, trabalhando incessantemente nessas rendas maravilhosas, enquanto esperavam pelos maridos, que andavam à pesca no mar alto. As grandes ondas do oceano rebentavam contra os rochedos e as grossas paredes do velho forte, construído sobre a pequena península rochosa. Por detrás daquelas paredes estavam enclausurados muitos homens, alguns ainda jovens, que tinham sacrificado as suas vidas por um ideal. As pessoas da localidade iam e vinham nas suas azáfamas quotidianas, sem se aperceberem das vidas restritas e destroçadas daqueles que se encontravam dentro daquelas espessas muralhas. Este velho e delapidado forte, construído há muitos séculos pelos árabes, ainda antes de Portugal ser uma nação, servia agora de prisão para reclusos políticos. Todos estes prisioneiros eram homens de grande qualidade moral e intelectual que compartilhavam diferentes ideologias políticas. Havia entre eles republicanos e democratas, comunistas, socialistas e até mesmo anarquistas. Eram todos homens de extraordinária coragem que se tinham unido numa causa comum, a luta contra a ditadura salazarista, que quase tinha transformado Portugal num enorme campo de concentração. Lutavam pelas mais elementares liberdades e direitos comuns.
Entre eles havia um grupo de goeses que tinham tomado parte na última revolução para a libertação daquela colónia do jugo português. Fazendo parte desse grupo, estava um velho amigo e colega de Lica. Até poucos anos antes eu ignorava totalmente que houvesse uma luta de goeses pela sua independência. Ninguém à minha volta parecia estar a par do que se passava. Ninguém mesmo o poderia saber, pois o povo, em geral, era sempre deixado em perfeita ignorância de tais assuntos, o que, aliás, era coisa fácil de manter, um vez que a imprensa era censurada. Mas, à medida que ia tendo mais conhecimento sobre a situação, através de Lica, fui-me apercebendo, dolorosamente, da enorme injustiça cometida para com o seu povo. A persistente e secular perseguição aos hindus, pela simples razão de professarem uma religião diferente do catolicismo, era mesmo inacreditável. As tradições e os costumes hindus eram considerados incivilizados pelos portugueses e, evidentemente, eliminados a todo o custo.
Uns anos antes de sair dos Açores já tinha tido a minha primeira experiência do que era a corrupção política quando o meu pai foi temporariamente suspenso do ensino. Isso deu-se por ter tido a audácia de publicar uns artigos em que mencionava certas irregularidades levadas a efeito pelas autoridades locais. Sem o apoio da justiça, numa sociedade injusta, isto deixou-nos com um sentimento de irremediável desespero. Mas este incidente, que nos tinha parecido uma amarga experiência, não era nada comparável ao sofrimento que Portugal tinha causado, ao longo do tempo, aos hindus de Goa.
A partir do momento em que visitámos pela primeira vez os nossos amigos no forte decidimos que a nossa lua-de-mel seria ali mesmo, em Peniche, e que passaríamos todo o tempo que nos fosse permitido na prisão com os nossos amigos reclusos. Chegámos naquela sexta-feira à tarde. Deixámos as malas no primeiro hotel decente que encontrámos e fomos de corrida para o forte, chegando mesmo a tempo da ultima visita do dia. Os prisioneiros foram então chamados à nossa presença: Inácio de Loiola, advogado, Tristão de Bragança Cunha, escritor; Laxmicant Bhembre, professor, Purshotham Kakodkar, político, e Rama Hegde, médico, amigo e colega de Lica. Vieram todos juntos para nos felicitarem e logo de seguida, com grande surpresa nossa, convidaram-nos para um almoço no dia seguinte, ali mesmo no forte, para festejar o nosso casamento. Já tinham pedido e obtido o devido consentimento. Na manhã seguinte, uns minutos antes das horas de visita, já lá estávamos à espera, junto ao maciço portão que dava entrada ao forte. Quando, finalmente, entrámos, fomos direitos à sala de recepção, como era costume. Desta vez, porém, tudo tinha mudado. A sala já estava maravilhosamente preparada para a cerimónia, com uma longa mesa coberta com uma toalha branca, lindamente enfeitada com flores.
No centro tinham colocado um bolo de noiva, sobre o qual estava escrita, em açucar a palavra felicidades. Que surpresa extraordinária, que linda ideia! Ficámos imensamente comovidos e sem palavras que pudessem transmitir o que então sentíamos». In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.



A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de E. Tágide/JDACT