«Talvez caiba a nós, portugueses,
por tradição histórica realizadores das tarefas impossíveis para os homens do
seu tempo, exercer no Atlântico, lago da civilização do terceiro milénio, a função
da Grécia (…) no primeiro milénio a. C., descobrir a síntese civilizacional que
nos encaminhe para a fraternidade (…) na paz e na prosperidade dos homens de
boa vontade». In Paulo Vallada.
A Quinta da Regaleira e o Portugal Imaginal. Entrevista com José Manuel
Anes 2ª Parte. Da evidência da Identidade Imaginal Portuguesa à necessária
Re-criação da tradição
(...) a perenidade dessas lendas e desses mitos, em Portugal, como nos
outros países da Europa, é o garante da sua energia, da sua vitalidade. Direi
mesmo mais: essa quina imaginal que
acabamos de definir, constitui, na verdade, a base dos valores sobre os quais
assenta, sob pena de desaparecimento,a Europa inteira». In Gilbert Durand
Paulo: Encontrámos esta ideia de um Portugal Imaginal num dos seus trabalhos, no qual aplicou a estrutura do imaginário, proposta por Durand, aos grandes temas da tradição mítica portuguesa. Estou convicto de que há uma relação muito grande entre temas fundamentais do Portugal Imaginal e a Quinta da Regaleira. Recordando a máxima de Hermes Trismegisto como é em cima, é em baixo; como é em baixo, é em cima, parece-me, de certo modo, ver na Quinta da Regaleira uma manifestação física do Portugal Imaginal. Na actualidade, Portugal é evidentemente um país com uma mítica muito forte, embora, paradoxalmente, ela seja hoje quase negada. Encontro até muita gente com vergonha de se afirmar português. Nega-se que exista quase uma particularidade do ser português, mas penso ser evidente que esta mítica existe. Não sei qual é a sua opinião.
José: Evidentemente que
existe.
Paulo: Na sua tese sobre o Portugal Imaginal, e na sua relação com os regimes
diurno e nocturno, coloca a saudade e o sebastianismo no nocturno e, no diurno,
o Culto do Espírito Santo e o Quinto Império.
José: Ora bem, isto é um
tema que foi uma proposta que eu fiz, e pus em analogia esse esquema da
alquimia nacional com o esquema da alquimia laboratorial.
Paulo: Tanto a saudade como o sebastianismo são passivos. O sebastianismo
espera o rei Sebastião e a saudade sente a ausência do futuro ou do passado,
mas é passiva, Yin No entanto, o Culto do Espírito Santo é activo, convida
todos à participação. A ideia do Quinto Império, vista como uma ideia de o
construir, é activa.
José: A saudade não está
explicitada, é uma ausência, é uma dimensão de ausência, uma coincidência de
ausência que ainda não está explicitada. Portanto, é o feminino absoluto, é o
nocturno absoluto. Depois, o sebastianismo, já é ausência de algo explicitado. Mas
vamos mais longe, vamos transcender o rei Sebastião e ascender ao Encoberto,
que é essa dimensão do algo que está em vias de chegar, ou que é preciso que
chegue. Nesse sentido, o sebastianismo estabelece a ponte entre o nocturno
absoluto e algo de diurno que está para surgir. Depois, certamente nessa matriz,
desce o Espírito Santo, o Espírito Universal dos alquimistas. Aí está
ele a descer, essa matéria aberta, essas saudades do futuro, essa matéria interior,
essa alma nacional e, de seguida, uma vez descido esse Espírito Santo, caminha-se
para a idade do ouro simbolizada pelo Quinto Império. Não é apenas um mito
nacional português, mas nós valorizamo-lo muito bem e faz parte de todo o nosso
imaginário. Nesse sentido, eu penso que há aqui um processo dinâmico deste imaginário
português, nas suas diversas componentes complementares, que tem de facto uma
dinâmica própria e que, uma vez posto em marcha, tal como o processo
alquímico, conduz a essa abertura, pelo menos imaginal, interior... Mas, em
relação à questão do Portugal Imaginal, volto a evocar o Lima
de Freitas e a sua memória, o meu querido amigo que muito me instruiu e
muito me motivou para este tipo de estudos. Era um homem de grande dimensão.
Não é por acaso que tem um livro publicado intitulado Lisboa Imaginal.
Paulo: Um dos seus últimos trabalhos devem ter sido os azulejos da Estação do
terminal do Rossio...
José: Exactamente. Esse
testamento em azulejos, magnífico. De facto, assim como é importante valorizar
o imaginário, é importante valorizar o mítico. Não é a mistificação, mas sim a
mitificação. A mitificação, se não somos nós que a fazemos, podem ser outros com
intenções mais malévolas de poder e de domínio, que a vão fazer. Porque o homem
é um terreno propício à mitificação. Fernando Pessoa confessava e
afirmava a sua condição de estimulador de almas. Ele era de facto um
mitificador, não era um mistificador.
Paulo: Aliás, Fernando Pessoa afirmou mesmo. Desejo ser um criador de
mitos, que é o mistério maior que pode obrar alguém da humanidade.
José: Exactamente. A criação
do espírito humano. Aqui estamos na Regaleira, num espaço que está feito de tal
maneira que é um convite à mitificação. Eu respondi a esse convite através dos
meus estudos, fornecendo elementos que me parecem plausíveis e que na vertente
esotérica foram caucionados pelo professor Antoine Faivre, aqui mesmo,
neste lugar, aquando desse colóquio de 1999, na Faculdade de Letras. Mas, de
facto, são propostas e não tenho garantias, não há documentos. São propostas!
Mas são propostas que existem, que me parecem correctas. Não nos esqueçamos de
que os símbolos são factos, como o é o seu enquadramento cultural. Tudo isso
são factos. Nesse sentido, penso que temos em Fernando Pessoa um grande
mitificador, um dos mais interessantes...
Paulo: Consegue reactualizar a mítica portuguesa...
José: Claramente. E
integrá-la numa modernidade, ou mesmo numa pós-modernidade, avant la lettre.
Fernando
Pessoa é, de uma modernidade extraordinária, precisamente nesse campo
imaginário e do mítico.
Paulo: Mas é só agora que
leio um texto da Paula Costa a dizer: Não, não, o Pessoa não estava
interessado em assuntos esotéricos. O centro dele mesmo é o esoterismo
José: O esoterismo, de
facto, faz parte da estruturada sua obra, da sua vida, não é um interesse marginal,
não é uma brincadeira, não é, um adorno. Faz parte das suas inquietações
profundas. Não é um pretexto para a literatura, está no fundamento da sua
literatura».
In Paulo Loução, A Alma Secreta de Portugal, Ésquilo Edições &
Multimédia, 2004, ISBN 972-8605-15-3.
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