domingo, 2 de junho de 2013

A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa. Luciano Rossi. «E enton ergeu-sse logo / e buscou muitas carreiras per que a aver podesse, / e ar catou mandadeiras que ll’enviou, alcayotas / vellas e mui sabedeiras de fazer moller manceba / sayr toste de cordura. Elas con ela falaron / e tanto ben lle disseron (…) E el deitou-sse con ela / en hũa casa escura…»

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Literatura de Corte: Cantigas de Santa Maria e Cantigas de Maldizer e D’escarno
«(…) Enquanto as monjas estão reunidas no capítulo a cantar:

viron entrar y un moço / mui fremosÿo correndo
e cuidaron que fill’era / d’infançon ou d’infançõa.

O reconhecimento acontece com um sobressalto:

A monja logo tan toste / connoceu que seu fill’era,
e el que era ssa madre; / e a maravilla fera
foi enton ela mui leda…

O inusitado enjambement sublinha a intensidade dramática, que o poeta obtém sem esforço, sendo correcta a observação de Rameline Marsan de que les quinze strophes, avec leurs quatre longs vers de 16 syllabes… paraissent courtes au lecteur. Com a mesma ingénua devoção, é este um dos milagres da religiosidade medieval, Afonso introduz-nos num prostíbulo, numa das suas cantigas d’escarno, só aparentemente blasfema. O início é decididamente narrativo:

Fui eu poer mão noutro di-
a a ũa soldadeira no conon,
e disse-m’ela: Tolhed’a, ledron…

O tema é o do encontro amoroso mal sucedido devido ao excessivo zelo religioso da soldadeira, que se recusa ao rei a pretexto de ser obrigatória a abstinência sexual no tempo da Quaresma! O martírio da renúncia, no dizer de Afonso, não é inferior ao sofrido pelo próprio Cristo:

Nunca, dê-lo dia en que naci,
fui tan coitado, se Deus me perdon;
e con pavor, aquesta oraçon
comecei logo e dixe a Deus assi:
«Fel e azedo bevisti, Senhor,
por min, mais muit’est’ aquesto peior
que por ti bevo nen que recebi»…

Que este tipo de ironia e de sarcasmo fosse perfeitamente tolerado e não parecesse irreverente na Idade Média é provado pelo facto de Afonso adoptar o mesmo tema, da abstinência sexual no período da Quaresma, exactamente numa cantiga de Santa Maria, a 115, que define como estoria. Dois cônjuges tinham decidido guardar castidade, pela sua grande fé, e tudo parece correr pelo melhor, até que o demónio se intromete, o homem não resiste à tentação e cede no próprio sábado santo:

Muit’ouv’o demo prazer
pois que ouve vençudo
o om’, e fez-lo erger
de seu leit’ encendudo
por con ssa moller jazer…

A mulher tenta dissuadir o marido com os mesmos argumentos da soldadeira, mas sem tanto sucesso:

Demais, festa será cras
dessa Pascoa santa;
porend’en ti Sathanas
non aja força tanta
que o que prometud’ás
brites…

O filho concebido no pecado será, pois, negro como o diabo, e só por intercessão de Maria poderá por fim ser salvo. Como se vê, com a simples mudança de sinal a história passa de obscena a devota. Mas pululam exemplos análogos na colectânea. Um simples conte à rire, a que não falta nenhum ingrediente, coup de foudre, insistente cortejamento da amada, velhas alcoviteiras e mortificantes fracassos do sedutor mesmo no momento culminante, poderia ser a cantiga 312, se não fosse a circunstância de aqueles insucessos acontecerem porque no quarto estava um retrato da Virgem, e como se diz no refrain, non convem que seja feita / nihũa desapostura / eno logar en que seve / da Virgen a sa fegura. Mas veja-se como são descritos de modo feliz os efeitos da paixão:

E se a bever lle davan, / el bever sol non podia,
e pero que sse deitava / pera dormir, non dormia;
e cuidand’en sa amiga / en como a averia,
o sen a perder ouvera / e caer en gran loucura.

Assim, também a intervenção das alcoviteiras reentrava no mais típico dos esquemas das histórias de sedução:

E enton ergeu-sse logo / e buscou muitas carreiras
per que a aver podesse, / e ar catou mandadeiras
que ll’enviou, alcayotas / vellas e mui sabedeiras
de fazer moller manceba / sayr toste de cordura.

Elas con ela falaron / e tanto ben lle disseron
del, per que a poucos dias / a venceron e veron
a el, e fezeron tanto / que a sa casa ll’a trouxeron.
E el deitou-sse con ela / en hũa casa escura…

Mas exactamente na melhor altura:

… e quis y jazer con ela; / mas per nehũa maneira
aquesto fazer non pode, / empero que prazenteira
era muit’ende a donzela / e el muito sen mesura.

Se o conto acabasse aqui, com uma consideração burlesca sobre a má sorte do incauto sedutor, não se afastaria muito da estrutura de um fabliau, e quem tivesse lido apenas os trechos citados não ficaria surpreendido com isso». In Luciano Rossi, A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, CV Camões, Instituto Camões, volume 38, série Literatura, 1979.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT