Literatura de Corte:
Cantigas de Santa Maria e Cantigas de
Maldizer e D’escarno
«(…) Enquanto as monjas
estão reunidas no capítulo a cantar:
viron entrar y un moço /
mui fremosÿo correndo
e cuidaron que fill’era /
d’infançon ou d’infançõa.
O reconhecimento
acontece com um sobressalto:
A monja logo tan toste /
connoceu que seu fill’era,
e el que era ssa madre; /
e a maravilla fera
foi enton ela mui leda…
O inusitado enjambement
sublinha a intensidade dramática, que o poeta obtém sem esforço, sendo correcta
a observação de Rameline Marsan de que les quinze strophes, avec leurs quatre longs vers de 16 syllabes…
paraissent courtes au lecteur. Com a mesma ingénua devoção, é este
um dos milagres da religiosidade medieval, Afonso introduz-nos num
prostíbulo, numa das suas cantigas d’escarno, só aparentemente blasfema. O início
é decididamente narrativo:
Fui eu poer mão noutro
di-
a a ũa soldadeira no
conon,
e disse-m’ela: Tolhed’a,
ledron…
O tema é o do encontro
amoroso mal sucedido devido ao excessivo zelo religioso da soldadeira, que se recusa ao rei a pretexto de ser
obrigatória a abstinência sexual no tempo da Quaresma! O martírio da renúncia,
no dizer de Afonso, não é inferior ao sofrido pelo próprio Cristo:
Nunca, dê-lo dia en que
naci,
fui tan coitado, se Deus
me perdon;
e con pavor, aquesta
oraçon
comecei logo e dixe a
Deus assi:
«Fel e azedo bevisti,
Senhor,
por min, mais muit’est’
aquesto peior
que por ti bevo nen que
recebi»…
Que este tipo de ironia
e de sarcasmo fosse perfeitamente tolerado e não parecesse irreverente na Idade
Média é provado pelo facto de Afonso adoptar o mesmo tema, da abstinência
sexual no período da Quaresma, exactamente numa cantiga de Santa Maria, a 115, que define como estoria. Dois cônjuges tinham decidido
guardar castidade, pela sua grande fé, e tudo parece correr pelo melhor, até
que o demónio se intromete, o homem não resiste à tentação e cede no próprio
sábado santo:
Muit’ouv’o demo prazer
pois que ouve vençudo
o om’, e fez-lo erger
de seu leit’ encendudo
por con ssa moller
jazer…
A mulher tenta dissuadir
o marido com os mesmos argumentos da soldadeira,
mas sem tanto sucesso:
Demais, festa será cras
dessa Pascoa santa;
porend’en ti Sathanas
non aja força tanta
que o que prometud’ás
brites…
O filho concebido no
pecado será, pois, negro como o diabo, e só por intercessão de Maria poderá por
fim ser salvo. Como se vê, com a simples mudança de sinal a história passa de
obscena a devota. Mas pululam exemplos análogos na colectânea. Um simples conte
à rire, a que não falta nenhum ingrediente, coup de foudre,
insistente cortejamento da amada, velhas alcoviteiras e mortificantes fracassos
do sedutor mesmo no momento culminante, poderia ser a cantiga 312, se não fosse
a circunstância de aqueles insucessos acontecerem porque no quarto estava um
retrato da Virgem, e como se diz no refrain, non convem que seja feita / nihũa desapostura / eno logar en que seve
/ da Virgen a sa fegura. Mas veja-se como são descritos de modo feliz
os efeitos da paixão:
E se a bever lle davan, /
el bever sol non podia,
e pero que sse deitava /
pera dormir, non dormia;
e cuidand’en sa amiga / en
como a averia,
o sen a perder ouvera / e
caer en gran loucura.
Assim, também a
intervenção das alcoviteiras reentrava no mais típico dos esquemas das histórias de sedução:
E enton ergeu-sse logo /
e buscou muitas carreiras
per que a aver podesse, /
e ar catou mandadeiras
que ll’enviou, alcayotas
/ vellas e mui sabedeiras
de fazer moller manceba /
sayr toste de cordura.
Elas con ela falaron / e
tanto ben lle disseron
del, per que a poucos
dias / a venceron e veẽron
a el, e fezeron tanto / que
a sa casa ll’a trouxeron.
E el deitou-sse con ela /
en hũa casa escura…
Mas exactamente na
melhor altura:
… e quis y jazer con
ela; / mas per nehũa maneira
aquesto fazer non pode, /
empero que prazenteira
era muit’ende a donzela /
e el muito sen mesura.
Se o conto acabasse aqui, com uma consideração burlesca sobre a má sorte
do incauto sedutor, não se afastaria
muito da estrutura de um fabliau,
e quem tivesse lido apenas os trechos citados não ficaria surpreendido
com isso». In Luciano Rossi, A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa,
Instituto de Cultura Portuguesa, CV Camões, Instituto Camões, volume 38, série
Literatura, 1979.
Cortesia de Instituto
Camões/JDACT