«(…) A situação não desagradava a Roberto, já que há indícios de
que, por várias vezes, se terá mostrado apoiante de reformas: deve ter
secundado os desejos dos monges de Vivicus,
apesar da oposição de outros, que terão aproveitado a sua ausência para
reclamar o regresso deles; era certamente por reconhecerem nele um guia
espiritual de renovação que outros o haviam acompanhado no regresso de uma
viagem à Flandres, dois dos que se incorporam no grupo que parte para Cister
eram originários de Arras.
NOTA: Quatro monges de Molesme, entre os quais Alberico e
Estêvão, fizerarm uma tentativa de reforma em Vivicus, mas foram obrigados a
retirar por intervenção do bispo Roberto da Borgonha; os factos, referidos na Vita Roberti, não são claros, mas parece
que a ida para o ermo foi realizado num momento em que o abade se encontrava ausente
e os partidários de uma vida monástica mais rigorosa não aguentavam o ambiente
de Molesme; o regresso foi imposto pelo bispo para evitar o escândalo que tal secessão
representava para a abadia de Molesme e lembrar aos mais zelosos que nada se
podia fazer sem o consentimento da autoridade eclesiástica, no caso, do bispo
de Langres. Por dupla razão, os mesmos monges se dirigem dentro em pouco ao
legado papal, o arcebispo de Lião, em momento favorável da passagem deste em
visita à sua arquidiocese.
Da viagem à Flandres trouxe Estêvão um
manuscrito precioso em que o calígrafo e iluminador Osberto representa os
abades de Cister e de Saint Vaast ao lado da Virgem Maria, com o próprio
Estêvão a fazer a oferenda de uma igreja. A oferta desse manuscrito, aliás,
sela um pacto de fraternidade espiritual celebrado entre Arras e Cister.
Mas a iniciativa da partida não deve ter sido da responsabilidade de Roberto,
pois as convicções não sofrem quebra quando Roberto, poucos meses
decorridos, se vê forçado a regressar a Molesme, por intimação papal e sob
reclamação dos monges daquele mosteiro, a que não devia faltar um líder capaz
de exigir intervenções firmes da autoridade. Os destinos da nova abadia, oportunamente
confirmada pela tomada de posse do abade, ficava nas mãos do antigo prior, Alberico,
homem forte, homem dado às ciências
divinas e conhecedor das experiências da vida, ardente em amor pela Regra e
cheio de caridade pelos irmãos, como declara o Exordium Paruum. Fizera
ele parte dos fundadores de Molesme, em 1075,
depois certamente de uma vida de estudo e de piedade. Braço direito de Roberto,
cabe-lhe levar por diante a reforma encetada; a ele pertence ter conseguido a
aprovação papal para a iniciativa, no tempo de Pascoal II, ter-se
libertado do pagamento de direitos senhoriais, e lançar a organização da vida
cisterciense: o regresso à Regra implicava nada aceitar do que nela não
estivesse consignado; rectificavam-se modos de vestir, regressava-se ao
tecido natural e ao desenho mais simples da túnica singela, e de comer, desapareciam
as carnes e as gorduras, como pobres, consagravam os monges a obrigação do
trabalho pelas próprias mãos e não admitiam rendimentos de outra procedência, pelo
que renunciavam a direitos sobre igrejas, fornos, moinhos, mas também a
priorados e recolha de dízimas; por isso tornava-se necessário equilibrar os
momentos de oração com os de trabalho e de leitura, pelo que o regresso a uma
liturgia mais simples recuperava tempos destinados a outras ocupações; restaurava-se
a obrigação do silêncio e da clausura estrita, nem os leigos podiam ultrapassar
a porta do mosteiro nem o monge podia pernoitar fora dele.
O equilíbrio das necessidades materiais da comunidade com as suas
disponibilidades de tempo e de receitas obrigava a outras decisões de não pequenas
consequências: o emprego de assalariados convertia os servos em pessoas
livres com trabalho fixo; o ingresso dos leigos nas actividades do mosteiro
tornava-os conversos, com todos os direitos dos monges, embora com dispensa de
participação no coro e na lectio.
Por morte de Alberico em 26 de Janeiro de 1108, é Estêvão Harding quem é escolhido, estando ele ausente,
fazem notar as fontes, para ocupar o seu lugar. Erudito e homem de acção,
pertence-lhe ter transposto para a Carta de caridade e unanimidade o
que certamente se vinha organizando com Roberto e com Alberico, acrescentando-lhe
ele uma experiência de longos anos, começada em Inglaterra e dilatada por
contactos diversos. A ele se deve atribuir a organização do scriptoritum
cisterciense onde fixava
os textos de uma reforma que se propunha ter instrumentos uniformes em
todas as abadias. A ele pertence sobretudo ter planeado a difusão da reforma
cisterciense, em movimento de expansão bem ao invés de quanto pretendia Molesme,
ainda antes de o próprio Bernardo
ter ingressado em Cister. La Ferté data do ano em que Bernardo chega ao
mosteiro e por isso há que supô-la já planeada. A ele há que reconhecer a
capacidade de conviver com gerações diversas, sem se molestar com o fervor
eventualmente mais intempestivo de alguns mais radicais, no caso da iluminura, por
exemplo, não esquece a lição do antigo mosteiro inglês, muito embora não
estranhe as reacções de Bernardo na procura de uma simplicidade que dispensa o
ornato excedentário, servindo certamente de moderador em diversas
circunstâncias.
A decisão de fundar novas abadias e não priorados envolve uma perspectiva
do múnus do abade que deve acompanhar os seus monges, com a assistência
reclamada na Regra (a decisão papal de proibir a elevação a abadias as celas
ou os priorados é de 1100 e pretende
evitar a dispersão. Os cistercienses devem ter obtido autorização anteriormente
a esta medida romana). Implica, por outra parte, a definição de relações entre
abadias». In Aires Nascimento, Cister, Introdução, tradução e notas, Edições
Colibri, Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, ISBN 972-772-032-3.
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