«(…) Quem
não tem papas na língua cedo ou tarde pagará em pessoa, não excluindo o
preço da infâmia sobre a sua conduta que se pretende duvidosa e ensombrada.
Estes, num carinho duro mas amantes da verdade, como uma chávena com pouco açúcar,
respondem simplesmente: Não olhes para
quem disse; presta atenção ao que foi dito. Se isso corresponde a realidades
incontestáveis, procura o triunfo da verdade e não a sua ocultação. Por
isso, quem atira uma pedra para o pântano deve prever o movimento e a deslocação
de ondas concêntricas até ao limite das margens mais opostas. Todavia, cada
pedra, não importa o seu tamanho, é levada por um bom espaço no ímpeto das
ondas, e depois fixa-se num sítio qualquer; mas quando, uma a seguir à outra,
se vão acumulando, resulta um dique que altera o percurso do rio. Também as
pequenas denúncias podem corrigir o percurso secular da Igreja dos nossos dias.
Então, a nossa própria espiritualidade purifica-se
das incrustações históricas e reidentifica-se com as fontes do seu primitivo
esplendor bíblico-evangélico arrancando-a à escravidão da riqueza à qual se
acomodam hoje todas as famílias religiosas; tarefa revolucionária e, não
obstante, inadiável. Uma multidão de algumas centenas de milhares de consagrados
e consagradas, de acomodados e acomodadas que vegetam na Igreja do Senhor à sua
custa: Hic manebimus optime, aqui permaneceremos confortavelmente.
O voto de pobreza, como tempo, leva quem o fez a
contentar-se com o mínimo, alimentando uma crescente inércia, uma estéril economia
de energias, uma desmotivação para o trabalho e para empreender iniciativas. Ao
limpar a extremidade do próprio barril, as ditas famílias religiosas deveriam
certificar-se se, por acaso, não existirá um duplo fundo onde se ocultam as
infidelidades aos seus três votos que, sem rejeitar a reforma, a adiam para
tempos futuros. Quando os conventos enriquecem, o verdadeiro espírito de
santidade vai-se extinguindo e sucede-lhe o bem-estar e a indolência, Pietro
Friedhofien.
Qualquer rico, leigo ou eclesiástico, e qualquer
avarento apenas entram no reino de Cristo através da intercessão de um pobre
necessitado: o peregrino a acolher, o sedento a dessedentar, o doente a curar, o
encarcerado a visitar, o litigioso a pacificar, o morto a sepultar. Sem tais
medianeiros, permanecerão fora do reino: Em verdade vos digo: não vos conheço.
O falar e o estar calado são ambos um testemunho, dizia Primo Mazzolari,
desde que o espírito seja de testemunho. A paz inicia-se em nós da mesma forma
que a guerra. Por consequência, aquele que julga não é menos devoto do que
aquele que apenas e sempre aplaude. O resto, isto é, as palavras não contam: é
zumbido de abelhas num buraco vazio.
Santo Agostinho indica-nos o método: seguimos esta regra apostólica que nos
foi transmitida pelos padres da Igreja: se encontrarmos qualquer coisa de
verdade, mesmo em homens perversos, corrijamos a sua malvadez sem violar aquilo
que neles há de justo. Assim, na mesma pessoa, emendemos os erros a partir das
verdades por ela admitidas, evitando destruir o que é verdadeiro com a crítica do
que é falso. Se, para corrigir, a pena tiver de aplicar a ponta do
bisturi na hipersensibilidade de um leitor respeitável, saiba-se que tal não
era o intento do cirurgião; pedimos desculpa pelo sofrimento involuntário que
possamos causar-lhe. A verdade é proclamada não quando convém, mas quando se
deve; a mensagem não nos pertence, é imensamente superior a nós, e por isso
podemos ser afastados pela nossa mesquinhez.
Os combates e as explosões podem ser misteriosas
nascentes evangélicas. Oh! Os incómodos e os riscos dos santos! Os acomodados,
pelo contrário, são levados a dizer: sim,
a verdade será essa, o caminho justo será este; mas não chegou o tempo de o
afirmar, não convém fazê-lo; viria mais mal que bem, agora às portas do Ano
Santo. Assumimos a responsabilidade sobre os nossos ombros sabe-se lá com que
as perseguições; faremos o jogo dos adversários. Sobretudo nestes momentos de
paz, de uma paz longa, que necessidade há de turvar as águas? Porquê provocar
escândalos? Revelar o segredo de Fátima? Necesse est ut eveniant scandala,
dizia Cristo: é necessário que os escândalos aconteçam quando é para o bem de
todos; ele próprio escandalizava de facto quer quando se opunha aos privilégios
da classe sinedrita, quer quando procurava convencer os seus de que dali a pouco
seriam escandalizados pela ignomínia da sua morte na cruz.
É assim que as ideias divinas, deixadas inactivas
fora da história, se tornam loucuras, segundo Chesterton, se assumidas com
finalidades diferentes por outros sistemas, contrários ao do reino dos céus.
Guisado de cumplicidades
Este livro não é dirigido à grande maioria daqueles
que, na cúria vaticana, cumpriram sempre o seu dever e que por o terem cumprido
com grande zelo, exemplaridade e devoção foram deixados a servir a Igreja no
silêncio e na indiferença de quem de tudo isto se serviu para lhes passar por
cima com o compressor. A eles prestamos a maior homenagem pelo serviço que
prestaram e continuam a prestar à inteira Igreja de Deus.
NOTA: A esses João Paulo I teve tempo de dirigir nos
breves 33 dias do seu pontificado, este elogio: No Concílio, no primeiro e no
segundo capítulos da Lumen Gentium, tentámos dar com
frases bíblicas uma grande ideia da Igreja: vinha de Cristo, família, rebanho
do Senhor, povo de Deus. Nenhum, que eu saiba, ousou dizer, não seria bíblico,
que a Igreja é também, pelo menos na sua organização externa, um relógio, que
com os seus ponteiros aponta ao mundo externo certas directivas; pode também
ser dito assim. Mas os que silenciosamente dão o seu melhor todos os dias são
os das congregações: um trabalho humilde e escondido, mas muito precioso que se
enaltece. Procuremos em conjunto dar ao mundo imagem de unidade, ainda que com
o sacrifício de qualquer coisa. Teremos tudo a perder, se o mundo não nos vê
solidamente unidos.
In I Millenari, Via col vento in Vaticano,
Kaos Edizioni, 1999, O Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto,
Religiões, Casa das Letras, 2005, ISBN 972-46-1170-1.
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