segunda-feira, 3 de junho de 2013

O Vaticano contra Cristo. Religiões. Tradução de José A. Neto. I Millenari. «Se, para corrigir, a pena tiver de aplicar a ponta do bisturi na hipersensibilidade de uma pessoa respeitável, saiba-se que tal não era o intento do cirurgião; desculpas pelo sofrimento involuntário que possamos causar-lhe…»

jdact

«(…) Quem não tem papas na língua cedo ou tarde pagará em pessoa, não excluindo o preço da infâmia sobre a sua conduta que se pretende duvidosa e ensombrada. Estes, num carinho duro mas amantes da verdade, como uma chávena com pouco açúcar, respondem simplesmente: Não olhes para quem disse; presta atenção ao que foi dito. Se isso corresponde a realidades incontestáveis, procura o triunfo da verdade e não a sua ocultação. Por isso, quem atira uma pedra para o pântano deve prever o movimento e a deslocação de ondas concêntricas até ao limite das margens mais opostas. Todavia, cada pedra, não importa o seu tamanho, é levada por um bom espaço no ímpeto das ondas, e depois fixa-se num sítio qualquer; mas quando, uma a seguir à outra, se vão acumulando, resulta um dique que altera o percurso do rio. Também as pequenas denúncias podem corrigir o percurso secular da Igreja dos nossos dias.
Então, a nossa própria espiritualidade purifica-se das incrustações históricas e reidentifica-se com as fontes do seu primitivo esplendor bíblico-evangélico arrancando-a à escravidão da riqueza à qual se acomodam hoje todas as famílias religiosas; tarefa revolucionária e, não obstante, inadiável. Uma multidão de algumas centenas de milhares de consagrados e consagradas, de acomodados e acomodadas que vegetam na Igreja do Senhor à sua custa: Hic manebimus optime, aqui permaneceremos confortavelmente.
O voto de pobreza, como tempo, leva quem o fez a contentar-se com o mínimo, alimentando uma crescente inércia, uma estéril economia de energias, uma desmotivação para o trabalho e para empreender iniciativas. Ao limpar a extremidade do próprio barril, as ditas famílias religiosas deveriam certificar-se se, por acaso, não existirá um duplo fundo onde se ocultam as infidelidades aos seus três votos que, sem rejeitar a reforma, a adiam para tempos futuros. Quando os conventos enriquecem, o verdadeiro espírito de santidade vai-se extinguindo e sucede-lhe o bem-estar e a indolência, Pietro Friedhofien.
Qualquer rico, leigo ou eclesiástico, e qualquer avarento apenas entram no reino de Cristo através da intercessão de um pobre necessitado: o peregrino a acolher, o sedento a dessedentar, o doente a curar, o encarcerado a visitar, o litigioso a pacificar, o morto a sepultar. Sem tais medianeiros, permanecerão fora do reino: Em verdade vos digo: não vos conheço. O falar e o estar calado são ambos um testemunho, dizia Primo Mazzolari, desde que o espírito seja de testemunho. A paz inicia-se em nós da mesma forma que a guerra. Por consequência, aquele que julga não é menos devoto do que aquele que apenas e sempre aplaude. O resto, isto é, as palavras não contam: é zumbido de abelhas num buraco vazio.
Santo Agostinho indica-nos o método: seguimos esta regra apostólica que nos foi transmitida pelos padres da Igreja: se encontrarmos qualquer coisa de verdade, mesmo em homens perversos, corrijamos a sua malvadez sem violar aquilo que neles há de justo. Assim, na mesma pessoa, emendemos os erros a partir das verdades por ela admitidas, evitando destruir o que é verdadeiro com a crítica do que é falso. Se, para corrigir, a pena tiver de aplicar a ponta do bisturi na hipersensibilidade de um leitor respeitável, saiba-se que tal não era o intento do cirurgião; pedimos desculpa pelo sofrimento involuntário que possamos causar-lhe. A verdade é proclamada não quando convém, mas quando se deve; a mensagem não nos pertence, é imensamente superior a nós, e por isso podemos ser afastados pela nossa mesquinhez.
Os combates e as explosões podem ser misteriosas nascentes evangélicas. Oh! Os incómodos e os riscos dos santos! Os acomodados, pelo contrário, são levados a dizer: sim, a verdade será essa, o caminho justo será este; mas não chegou o tempo de o afirmar, não convém fazê-lo; viria mais mal que bem, agora às portas do Ano Santo. Assumimos a responsabilidade sobre os nossos ombros sabe-se lá com que as perseguições; faremos o jogo dos adversários. Sobretudo nestes momentos de paz, de uma paz longa, que necessidade há de turvar as águas? Porquê provocar escândalos? Revelar o segredo de Fátima? Necesse est ut eveniant scandala, dizia Cristo: é necessário que os escândalos aconteçam quando é para o bem de todos; ele próprio escandalizava de facto quer quando se opunha aos privilégios da classe sinedrita, quer quando procurava convencer os seus de que dali a pouco seriam escandalizados pela ignomínia da sua morte na cruz.
É assim que as ideias divinas, deixadas inactivas fora da história, se tornam loucuras, segundo Chesterton, se assumidas com finalidades diferentes por outros sistemas, contrários ao do reino dos céus.

Guisado de cumplicidades
Este livro não é dirigido à grande maioria daqueles que, na cúria vaticana, cumpriram sempre o seu dever e que por o terem cumprido com grande zelo, exemplaridade e devoção foram deixados a servir a Igreja no silêncio e na indiferença de quem de tudo isto se serviu para lhes passar por cima com o compressor. A eles prestamos a maior homenagem pelo serviço que prestaram e continuam a prestar à inteira Igreja de Deus.

NOTA: A esses João Paulo I teve tempo de dirigir nos breves 33 dias do seu pontificado, este elogio: No Concílio, no primeiro e no segundo capítulos da Lumen Gentium, tentámos dar com frases bíblicas uma grande ideia da Igreja: vinha de Cristo, família, rebanho do Senhor, povo de Deus. Nenhum, que eu saiba, ousou dizer, não seria bíblico, que a Igreja é também, pelo menos na sua organização externa, um relógio, que com os seus ponteiros aponta ao mundo externo certas directivas; pode também ser dito assim. Mas os que silenciosamente dão o seu melhor todos os dias são os das congregações: um trabalho humilde e escondido, mas muito precioso que se enaltece. Procuremos em conjunto dar ao mundo imagem de unidade, ainda que com o sacrifício de qualquer coisa. Teremos tudo a perder, se o mundo não nos vê solidamente unidos.

In I Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras, 2005, ISBN 972-46-1170-1.

Cortesia Casa das Letras/JDACT