quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A Vida é Breve. Poesia. José Règio. «A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas, mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre outras qualidades, o produto desses temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. … qualidades não passarão dum truque literário»

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Colegial
Em cima da minha mesa,
da minha mesa de estudo,
mesa da minha tristeza
em que, de noite e de dia,
rasgo as folhas, leio tudo
destes livros em que estudo,
e me estudo
(eu já me estudo…)
E me estudo,
a mim,
também,
em cima da minha mesa,
tenho o teu retrato, Mãe!

À cabeceira do leito,
dentro dum lindo caixilho,
tenho uma Nossa Senhora
que venero a toda a hora…
Ai minha Nossa Senhora
que se parece contigo,
e que tem, ao peito,
um filho
(o que ainda é mais estranho)
que se parece comigo,
num retratinho,
que tenho,
de menino pequenino…!

No fundo da minha mala,
mesmo lá no fundo, a um canto,
não lhes vá tocar alguém,
(quem as lesse, o que entendia?
Só riria
do que nos comove a nós…)
Já tenho três maços, Mãe,
das cartas que tu me escreves
desde que saí de casa…
Três maços – e nada leves! –
Atados com um retrós…

Se não fora eu ter-te assim,
a toda a hora,
sempre à beirinha de mim,
(sei agora
que isto de a gente ser grande
não é como se nos pinta…)
Mãe! Já teria morrido,
ou já teria fugido,
ou já teria bebido
algum tinteiro de tinta!

Fraternidade
Um dia, um meu irmão que tinha o que eu não tenho
a vidente ignorância a que só Deus assiste
pegou dum grande, rude, grosso lenho,
matéria bruta e viva, que resiste...

Vencendo-a, afeiçoou as fibras angulosas
a umas formas viris, tão puras como cruas;
pôs-lhe um trapo nas partes vergonhosas;
estiraçou-lhe os pés e as pernas nuas.

Dos ramos laterais do lenho primitivo,
a navalhadas, fez os braços que faltavam,
toscos, mas com, lá dentro, sangue vivo,
e tumefactas mãos que se espalmavam.

E enfim, todo a tremer de amor e de receio,
noutro bloco, moldou uma cabeça aflita,
com pálpebras descidas até meio
e a boca a abrir num grito que não grita.

Tudo o que de cruel a vida lhe ensinara,
mais o que tinha em si maior do que o destino,
sem mesmo ele o saber, ganhou voz clara
no longo rosto esquálido e divino.

Dois troncos pôs em cruz e assim fez o madeiro;
sobre eles ajuntou e cravejou tudo isto;
e aquilo que ontem era um castanheiro
num altar figurou de Jesus Cristo

O tempo foi rolando... E os centos de anos viram
rojar-se a multidão ante esse lenho, - santo
só porque, sob a graça, o esculpiram
umas humanas mãos em pó há tanto!

Quantas profanações, depois, não arrastaram
por lôbregos saguões, recantos, corredores,
esses membros que bispos incensaram,
essa cabeça de Senhor das Dores!

Até que um dia, entrando a um sótão miserável,
vou encontrar no chão, entre sucata, aquela
mutilada cabeça inda admirável,
por mutilada e vil não menos bela.

Juntei, juntei, tremendo, os restos de Jesus:
a sagrada cabeça, o busto carunchoso
e os braços despregados já da cruz,
com mãos roídas como as dum leproso.

Mandei, mandei buscar essas mutilações!
Com elas me fechei no meu buraco, e o dia
se me foi entre velhas orações,
que eu nem sabia que inda sabia...

Às vezes, quando o ar parece que me foge,
me falta Deus, ou espanta a nossa condição,
como os fiéis de outrora, a seus pés, hoje,
dobro o joelho trémulo no chão.

Nem restos de orações lhe rezo! Nada rezo.
Espero no silêncio e na opressão, curvado,
que Jesus Cristo ao seu madeiro preso,
tenha dó de mais um crucificado.

Das pálpebras que o tempo enegreceu, o olhar
que entre elas se não vê, mas se adivinha e sente,
me banha todo, então, como um luar,
e me diz que há Alguém ali presente.

Não! Já não fico só na minha solidão!
Já me não pesa tanto a minha própria cruz!
Já quase, quase sei (Jesus, perdão!)
Que tenho em ti como um irmão, Jesus.

Meus olhos, que a ruindade interior calcina,
inundam-se-me então de bruma e de frescura,
e eu choro por nós todos, cuja sina
é sermos a imperfeita criatura...

E a graça que uma vez desceu dos altos céus
às mãos do pobre artista incógnito, as benzeu,
e as fez fazer dum tosco lenho um Deus
tão próximo de nós como do céu,

A pouco e pouco vem sobre a minha cabeça
(como o calor do sol que enxuga os próprios lodos)
de modo que já nada há que me impeça
de ser feliz! E irmão de tudo e todos.

Poemas de José Régio


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