quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Madalena. História e Mito. Helena Barbas. «Maria Madalena surge ainda numa Carta de Tibério a Pilatos como mensageira e a sua narrativa do desastre da Paixão perturba o Imperador levando-o a condenar a morte de Cristo um tão bom médico»


jdact e wikipedia

Madalena interlocutora privilegiada de Jesus
 (…) Na primeira parte das Actas de Pilatos  encontram-se umas Memórias de Cristo, hipoteticamente compostas ao tempo de Pilatos, em que se elabora sobre a subida ao Calvário, a aflição dos amigos e familiares de Jesus (X), se desenvolve o episódio de José de Arimateia (XI), e se exploram as lamentações das mulheres, entre elas Madalena, sobre a sua morte. Este parece ter inspirado algumas narrativas versificadas da paixão, como o pranto da Virgem, em diálogo dramático com Maria Madalena, de mestre André Dias (1435). Encontra-se, também, uma outra versão semelhante na literatura de cordel, um texto inédito do século XVI, no Arquivo da Biblioteca de Évora de F. Vaz Guimarães, o Auto Da Muito Dolorosa Payxão de Nosso Senhor Jesus Cristo Conforme a Escreveram Os Quatro Evangelistas (1593).

E veendo esto a Magdalena,
vayse de manhaã com grande mazella,
dizer a sua mãe aquesta novella:
viinde ora veer oo muito mesella,
como levam preso vosso filho cousa muyto bella,
como se fosse huum falsso enganador.

[E vendo isto a Madalena/ vai-se de manhã com grande dor/ dar à sua mãe esta notícia/ vinde agora ver ó muito infeliz/ como levam preso vosso filho coisa muito bela/como se fosse um falso enganador.]

A par da acção e pregação públicas da lenda, encontra-se o discurso privado da emoção individual que apresenta Madalena como interlocutora e parceira privilegiada na relação com Cristo.

Cristo, um tão bom médico
Maria Madalena surge ainda numa Carta de Tibério a Pilatos como mensageira e a sua narrativa do desastre da Paixão perturba o Imperador levando-o a condenar a morte de Cristo um tão bom médico. Esta Carta, que também inspira um romance do século XX (Pazzi, Evangelho de Judas, 1989), vai aparecer transcrita na sua totalidade na versão portuguesa da Legenda Aurea, o Flos Sanctorum português de 1513, Carta de Pôncio Pilatos Ao Tibério César Sobre A Morte y Ressurreição de Cristo Carta de Publio Lentulo, da Terra de Herodes, Escreveu aos Senadores de Roma.

1ª. tentativa de roubo do Noli me tangere, (con)fusão de Marias
Mais importante será o Evangelho de Bartolomeu, em português, Os Actos de Bartolomeu incluídos nos medievos Autos dos Apóstolos, que explora a mesma temática, embora quase pise o risco da fronteira em direcção ao gnosticismo: elucubra sobre a encarnação, a descida aos Infernos de Jesus, a criação dos anjos, a queda de Lúcifer. Temas análogos se desenvolvem nas Actas de Pilatos na segunda parte. A literatura apocalíptica, abundante em extremo, sentia predilecção por todos estes pontos. Temos já feito notar repetidas vezes que a seita dos Gnósticos também se preocupava com eles com frequência. Não obstante, o nosso apócrifo não contém em geral erros dogmáticos.

É neste texto que se torna patente a inquietação da Igreja pela injustiça de que a primeira aparição de Cristo tenha sido feita a Maria Madalena e não a sua Mãe, como mandaria a piedade filial. É a primeira das inúmeras tentativas para roubar o Noli me tangere a Madalena. O processo vai ser desencadeado pelo esforço de confusão entre os nomes e as Marias: O Salvador então apareceu-lhes no carro do pai e disse a Maria: Maria Khar Mariath (Maria a mãe do Filho de Deus). Maria respondeu: Rabbouni Kathiathari Miõth (Filho de Deus Todo-Poderoso, meu Senhor e meu Filho). Segue-se um longo discurso de Jesus a Maria, durante o qual ele lhe pede que diga aos seus irmãos: Vou subir ao meu Pai e teu Pai etc. Maria diz: Se de facto não me é permitido tocar-te, pelo menos abençoa o meu corpo em que te dignaste habitar. A confusão entre Maria, Mãe de Jesus, e Madalena, é apresentada como uma típica falta de respeito pela história própria dos textos coptas. Mas vamos voltar a encontrá-la usada premeditadamente para diluir a personagem de Madalena».

In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa, 2008, ISBN 978-989-8092-29-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT