Madalena interlocutora privilegiada de Jesus
(…) Na primeira parte das Actas de Pilatos encontram-se umas Memórias de Cristo, hipoteticamente compostas ao tempo de
Pilatos, em que se elabora sobre a subida ao Calvário, a aflição dos amigos e
familiares de Jesus (X), se desenvolve o episódio de José de Arimateia (XI), e
se exploram as lamentações das mulheres, entre elas Madalena, sobre a
sua morte. Este parece ter inspirado algumas narrativas versificadas da paixão,
como o pranto da Virgem, em
diálogo dramático com Maria Madalena, de mestre André Dias (1435).
Encontra-se, também, uma outra versão semelhante na literatura de cordel, um
texto inédito do século XVI, no Arquivo da Biblioteca de Évora de F. Vaz
Guimarães, o Auto Da Muito Dolorosa
Payxão de Nosso Senhor Jesus Cristo Conforme a Escreveram Os Quatro
Evangelistas (1593).
E veendo esto a Magdalena,
vayse de manhaã com grande mazella,
dizer a sua mãe aquesta novella:
viinde ora veer oo muito mesella,
como levam preso vosso filho cousa muyto bella,
como se fosse huum falsso enganador.
[E vendo isto a Madalena/ vai-se de manhã com grande dor/ dar à sua mãe
esta notícia/ vinde agora ver ó muito infeliz/ como levam preso vosso filho
coisa muito bela/como se fosse um falso enganador.]
A par da acção e pregação públicas da lenda, encontra-se o discurso privado
da emoção individual que apresenta Madalena como interlocutora e
parceira privilegiada na relação com Cristo.
Cristo, um tão bom médico
Maria Madalena surge ainda numa Carta
de Tibério a Pilatos como mensageira e a sua narrativa do desastre da
Paixão perturba o Imperador levando-o a condenar a morte de Cristo um tão bom
médico. Esta Carta, que também
inspira um romance do século XX (Pazzi, Evangelho
de Judas, 1989), vai aparecer transcrita na sua totalidade na versão
portuguesa da Legenda Aurea, o Flos Sanctorum português de 1513, Carta de Pôncio Pilatos Ao Tibério César
Sobre A Morte y Ressurreição de Cristo Carta de Publio Lentulo, da Terra de Herodes, Escreveu aos Senadores
de Roma.
1ª. tentativa de roubo do Noli me tangere, (con)fusão de Marias
Mais importante será o Evangelho de
Bartolomeu, em português, Os Actos de
Bartolomeu incluídos nos medievos Autos
dos Apóstolos, que explora a mesma temática, embora quase pise o risco da
fronteira em direcção ao gnosticismo: elucubra sobre a encarnação, a descida
aos Infernos de Jesus, a criação dos anjos, a queda de Lúcifer. Temas análogos se desenvolvem nas Actas
de Pilatos na segunda parte. A literatura apocalíptica, abundante em extremo,
sentia predilecção por todos estes pontos. Temos já feito notar repetidas vezes
que a seita dos Gnósticos também se preocupava com eles com frequência. Não
obstante, o nosso apócrifo não contém em geral erros dogmáticos.
É neste texto que se torna patente a inquietação da Igreja pela injustiça de que a primeira
aparição de Cristo tenha sido feita a Maria Madalena e não a sua Mãe, como
mandaria a piedade filial. É a primeira das inúmeras tentativas para roubar o Noli me tangere a
Madalena. O processo vai ser desencadeado pelo esforço de confusão entre os
nomes e as Marias: O Salvador então
apareceu-lhes no carro do pai e disse a Maria: Maria Khar Mariath (Maria a mãe
do Filho de Deus). Maria respondeu: Rabbouni Kathiathari Miõth (Filho
de Deus Todo-Poderoso, meu Senhor e meu Filho). Segue-se um longo
discurso de Jesus a Maria, durante o qual ele lhe pede que diga aos seus
irmãos: Vou subir ao meu Pai e teu Pai etc. Maria diz: Se de
facto não me é permitido tocar-te, pelo menos abençoa o meu corpo em que te
dignaste habitar. A confusão entre Maria, Mãe de Jesus, e Madalena,
é apresentada como uma típica falta de respeito pela história própria dos
textos coptas. Mas vamos voltar a encontrá-la usada premeditadamente para
diluir a personagem de Madalena».
In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa,
2008, ISBN 978-989-8092-29-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT