Um microcosmos de ouro e de lama
«Interminável florilégio esse, que se dedica à Sevilha do século XVI. A
Grande Babilónia de Espanha,
impressionou o espírito dos contemporâneos, pela sua incrível vitalidade, o seu
prodigioso dinamismo. Este vigor exprimia-se em todos os domínios da actividade
humana: na protecção de riquezas, na mobilidade social, no auxílio aos necessitados,
na curiosidade científica, na euforia das festas, no fervor religioso, na criação
literária e artística, no cintilar infindo de uma comunidade corno que
desenhada num claro-escuro violentamente contrastado.
Sevilha, no século XVI, suscitou a admiração dos seus habitantes e dos
estrangeiros, os elogios inflamados de poetas e de humanistas locais, de
viajantes e de artistas nascidos no seu solo ou vindos de países longínquos.
Assim, muito antes de o historiador francês Fernand Braudel ter afirmado que em
Sevilha, no século XVI, é que pulsara o
coração do mundo, muito dos que viveram então na cidade tinham já compreendido
a importância que ela adquirira no contexto espanhol e universal. Esta
consciência exprime-se numa hipérbole irreprimível, saída da pena de um dos
seus grandes poetas, Fernando de Herrera, que apostrofou a sua pátria
nestes termos: Tu não és uma cidade, mas
um universo, concluindo, depois, por a definir como uma parte de Espanha, superior ao todo.
É difícil encontrar uma metrópole que tenha recebido mais testemunhos
de entusiasmo, todos eles, mesmo quando exagerados, assentes numa realidade
indubitável. Assim, quando Alonso Morgado fala da muito populosa cidade de Sevilha, refere-se a uma comunidade de
mais de 100000 habitantes, isto é, a um dos maiores aglomerados da Europa de
então. Quando o mesmo autor faz alusão à melhor
fatia de terra do mundo, fala de um espaço urbano com uma rara concentração
de monumentos, que ainda hoje espanta e deslumbra, como a Giralda, a Catedral,
o Alcázar (Alcácer), o Palácio Arquiepiscopal, a Casa Lonja. Podemos igualmente
compreender a exaltação de Morgado, quando a chegada da frota e a transferência
dos tesouros americanos para o interior das portas da cidade o levam a evocar a extrema riqueza em ouro e prata. Luís
Zapata também se desfez em elogios sobre a profusão de ouro, tão inconcebível que dificilmente acreditaríamos
nela, ainda que a tivéssemos à frente dos olhos, enquanto Jerónimo de
Alcalá afirmava que Sevilha representava verdadeiros arquivos da riqueza do mundo. Se a cidade produzia este
efeito impressionante, os campos circundantes davam azo a impressões igualmente
vivas. Tomás Mercado define-os como ricos
e férteis para toda a espécie de colheiras, e Rodrigo Caro evoca a grande abundância de pomares, jardins, villas,
mosteiros e casas de recreio espalhadas por
todos os arredores da cidade.
Interminável florilégio, com efeito, este dedicado à Sevilha do século
XVI. A Grande Babilónia de Espanha,
impressionou o espírito dos seus contemporâneos pela sua incrível vitalidade, o
seu prodigioso dinamismo. Este vigor exprimia-se em todos os domínios da actividade
humana: na produção de riquezas, na mobilidade social, no auxílio aos
necessitados, na curiosidade científica, na euforia das festas, no fervor
religioso, na criação literária e artística, no cintilar infindo de uma
comunidade como que desenhada num claro-escuro violentamente contratado.
Sevilha é um universo, como Herrera pretendia, mas constituído
por mundos diversos. No espaço, divide-se entre o mundo do poder (Praça de São Francisco), o mundo da economia (as Gradas),
o mundo dos marginais (o Arenal)
e aquele que os resume a todos, o
mundo do rio, com os seus soldados, vendedores, marinheiros, calafates,
pescadores, bateleiros, descarregadores, oleiros, as suas lavadeiras, os seus condenados
às galés, os seus pícaros, os seus passeantes solitários ou acompanhados.
Socialmente, a sua população formava também um mundo múltiplo, no qual as classes sociais estavam
perfeitamente hierarquizadas e onde a mobilidade gerada pelo dinamismo
económico não era suficiente para criar uma permeabilidade suficiente entre os
diferentes grupos que coabitavam portas adentro. Os nobres ocupavam o topo da escala
social, com uma presença importante da alta aristocracia e algumas figuras
híbridas, tais como os nobres comerciantes que não decaíam da sua posição
social devido ao exercício do comércio com as Índias. A seguir, vinham os
mercadores, ansiando sempre por um título nobiliárquico, os profissionais e os
artesãos, sempre solidários e cuja ambição era tornarem-se patrões. Mas Sevilha
era além disso, um mapa geográfico de
todas as nações, com as suas importantes colónias de comerciantes
estrangeiros (genoveses e outros italianos, flamengos, portugueses, franceses)
e mercadores oriundos de outros reinos hispânicos (sobretudo bascos, mas também
castelhanos, asturianos, galegos, aragoneses e catalães). Isto sem levarmos em
linha de conta as minorias étnicas, compostas de mouros (descendentes daqueles
cujas terras tinham sido conquistadas), ciganos, mulatos, negros de Africa
provenientes, na sua maioria do comércio de escravos, que era tolerado». In Sevilha,
Século XVI, De Colombo a D. Quixote, Entre a Europa e as Américas., O coração e
as riquezas do Mundo, coordenação de Carlos Araújo, Carlos Martínez Shaw,
Terramar, Lisboa, 1993, ISBN 712-710-073-2.
Cortesia de Terramar/JDACT