sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Luandino Vieira. O Mineiro Angolano da Memória. Adriana Mello Guimarães. «O papel de um escritor em qualquer sociedade é ser, realmente, a consciência crítica dessa sociedade (…) Portanto, a consciência crítica seria uma consciência que aponta os erros, as dificuldades, os defeitos…»

Cortesia de wikipedia

«(…)
A graça e a alegria da estória
A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota. In João Guimarães Rosa, Tutaméia, Aletria e Hermenêutica

«O livro Luuanda (1963) é constituído por três estórias. Aqui Luandino inova no uso da língua, criando uma linguagem que, embora não seja o português falado nos musseques em Luanda, tem esta marca. Das três estórias do livro, Vavó Xixi e seu Neto Zeca Santos, Estória do Ladrão e do Papagaio, Estória da Galinha e do Ovo, analisaremos a terceira. O enredo se desenvolve em torno da luta por um ovo que pode ser visto como um símbolo que representa a identidade dos habitantes de um musseque. Neste texto a infância surge na figura de duas crianças que traduzem a fala da natureza, neste caso a galinha. A estória começa na hora das quatro horas, quando começa a confusão entre duas vizinhas. Nga Zefa tem uma galinha, Cabíri, que insiste em ir alimentar-se no quintal de Nga Bina, uma personagem que, grávida, tem o grande desejo de comer um ovo. Levada pelo desejo, Nga Bina alimenta a galinha, que finalmente põe um ovo em seu quintal. As vizinhas discutem. Uma reclama o direito à propriedade da galinha e do ovo; a outra requisita o direito ao ovo enquanto produto da alimentação fornecida em seu quintal. Sem solução à vista, solicitam a mediação da mais velha do grupo, Vavó Bebeca. Nada se resolve; as mulheres, de forma a decidir o caso, pedem ajuda a várias pessoas: a um negociante branco, Sô Zé, que só quer tirar vantagem; ao inteligente seminarista João Pedro; a Sô Vitalino, que explora os pobres mediante o aluguer de cubatas; ao Artur Lemos, ex-notário e bêbado, símbolo da burocracia e da decadência do sistema. Todos tentam conseguir a propriedade do ovo.
Entretanto, duas crianças, Beto e Xico, entram em cena, aproximam-se da galinha e, em seguida, afirmam que aprenderam a língua das galinhas. Finalmente, aparece a autoridade policial, e um sargento diz que por não serem autorizadas reuniões com mais de duas pessoas, ele terá de ficar com a galinha e com o ovo da discórdia. Duas são, basicamente, as possibilidades de solução do problema: ou as duas mulheres mantêm o litígio e nenhuma das duas leva o ovo, ou elas se unem para defender o seu direito ao ovo. Neste momento de tensão, as duas crianças, Beto e Xico começam a utilizar a língua das galinhas e imitam um galo a chamar pela Cabíri:

Até a Cabíri deixou de se mexer, só a cabeça virava em todos os lados, revirando os olhos a procurar no meio do vento esse cantar conhecido que lhe chamava (…) E, então, sucedeu: Cabíri espetou com força as unhas dela no braço do sargento, arranhou fundo, fez toda a força nas asas, e as pessoas, batendo palmas, uatobando e rindo, fazendo pouco, viram a gorda galinha sair a voar por cima do quintal, direita e leve, com depressa, parecia era ainda um pássaro de voar todas as horas.

A solução, a saída (isto é, a libertação) se dá, evidentemente, pela união dos oprimidos. De facto, Luandino chama a atenção para a necessidade da existência de uma consciência crítica:

O papel de um escritor em qualquer sociedade é ser, realmente, a consciência crítica dessa sociedade (…) Portanto, a consciência crítica seria uma consciência que aponta os erros, as dificuldades, os defeitos; tudo quanto, na realidade, deve ser transformado para melhor.

Mas uma significação política da estória, pura e simples, configuraria apenas uma retórica ideológica; seria uma percepção superficial da dimensão estética da narrativa luandina, porque essa consciência é sempre uma conquista, e começa pela visão crítica de si mesmo como actor da História. Essa consciência outra coisa não é senão o saber contar a própria história como uma anedota, reinventando-a. Ora, isto não é possível sem uma apropriação da linguagem. O sentido da verdadeira libertação consiste exactamente nisso: o inventar, dentro da História, a própria história, com todos os recursos, com todas as novidades e particularidades que constituem a graça e a alegria anedótica da estória, sem o que não seria uma tarefa suportável. É o recuperar, urbano, de uma estória tradicional, passada com outros animais. Ou seja: mais uma vez o escritor vai buscar, na memória, as tradições herdadas para consolidar a sua obra singular». In Adriana Mello Guimarães, Luandino Vieira, O Mineiro Angolano da Memória, Artigos e Ensaios, Revista Crioula, nº 3, 2008.

Cortesia de Revista Crioula/JDACT