Resumo
«O presente estudo centra-se em dois capítulos específicos da Crónica de
Portugal de 1419, dedicados às proezas de Fuas Roupinho. Tendo como objectivo
uma melhor compreensão da funcionalidade que esses relatos incorporam, quando
enquadrados nos propósitos político-ideológicos globais da crónica régia
quatrocentista. Novos dados relativos à suposta identidade histórica do mítico
almirante luso.
A Crónica de Portugal de 1419 sinaliza
o nascimento de uma sólida tradição cronística régia, meio de transmissão
de um discurso historiográfico bastante definido, consistente e sensível aos
desígnios políticos da recém empossada dinastia
de Avis. Por outro lado, ainda em relação às necessidades legitimadoras desta
dinastia, a imagem idealizada de Afonso Henriques, como um semi-santo paladino
da Cristandade, é plasmada no discurso historiográfico régio para prevalecer, a
partir daí, sobre as representações alternativas do primeiro rei português,
nomeadamente, as criadas em meios aristocráticos. No entanto, no seio da narrativa do reinado de Afonso Henriques na Crónica
de 1419, constam dois capítulos cuja peculiaridade nos chama
imediatamente a atenção, ao roubarem momentaneamente o
protagonismo ao monarca luso. Neles se reportam os feitos de Fuas
Roupinho, apresentado como senhor de Porto de Mós e almirante de uma frota
portuguesa que cumpriu um papel importante
nos combates marítimos e acções de pirataria contra os muçulmanos, nos inícios da década de 80
do século XII. Pretendo clarificar alguns aspectos atinentes ao relato dos
feitos de Fuas Roupinho na Crónica de 1419, bem como aventar
algumas propostas sobre o significado ideológico que estas narrativas
incorporam, no que respeita ao discurso historiográfico da dinastia de Avis, ou
seja, tentar perceber em que medida elas se articulam com os propósitos legitimadores
deste texto, produzido a mando do filho do rei João I, o então infante Duarte.
Fuas Roupinho na Crónica de 1419
Dois capítulos da Crónica são consagrados aos feitos
de Fuas Roupinho, que era, segundo a mesma crónica, o senhor de Porto de
Mós. De acordo com esta compilação, Gani,
rei da terra onde ora he Cárceres e
Valemça, acompanhado do seu irmão, liderou uma expedição em terra de
cristãos, atingindo o seu exército o termo de Porto de Mós. Ao tomar
conhecimento da aproximação dos muçulmanos, Fuas Roupinho decide
abandonar o local. Deixando aí homens que pudessem defender o castelo, e
esconde-se na serra que chamavom da
Mondega. Daqui envia, de seguida, uma mensagem aos habitantes de Alcanede e
de Santarém, na qual lhes pede que o auxiliem no combate contra o rei muçulmano
que se dirige a Porto de Mós. Os mouros investem sobre o dito castelo,
convencidos de que a tarefa a que se propunham seria facilmente concretizada,
enquanto os homens que estavam escondidos com Fuas Roupinho lhe
aconselham que vá imediatamente em socorro do seu castelo. O nobre português
dirige então um discurso aos seus homens, onde lhes explica o seu plano, o qual
consistia em esperar pelo anoitecer, quando os inimigos se encontrassem
entorpecidos pelo sono, acometendo-os nessa altura. Por fim, o plano de Fuas
Roupinho foi cumprido, obtendo os cristãos a vitória e aprisionando o rei Gani e o seu irmão, a 22 de Maio de 1218 (AD 1180), de acordo com a
indicação da Crónica. Ambos foram levados a Coimbra e apresentados perante
Afonso Henriques, que outorga muitas merçees
a Fuas Roupinho, em consideração pelo seu feito.
A Crónica prossegue, no capítulo imediatamente posterior, com as
outras proezas de Fuas, que à época, pousava com o rei em Coimbra. Por essa
altura, os habitantes de Lisboa escrevem uma missiva a Afonso Henriques, na
qual dão a conhecer que a cidade era assolada por uma frota de mouros, comandada
por Ferneio d Alphamim, requerendo os
lisboetas, por esse motivo, o auxílio régio. O rei encarrega Fuas Roupinho de
ir a Lisboa, onde deveria armar uma esquadra para combater os muçulmanos,
dando, ao mesmo tempo, instruções aos habitantes da cidade para que seguissem
as ordens do recém nomeado almirante.
Depois da armada a frota cristã, ela segue para o cabo Espichel, onde encontra
as galés mouras. Trava-se, então, uma batalha naval, de onde saem triunfantes
os cristãos, em Julho da era de 1218
(AD
1180). Depois de retornar a Lisboa, Fuas Roupinho escreve ao monarca
português, comunicando-lhe a sua vontade, coincidente com a dos habitantes de
Lisboa, de encetar uma guerra marítima contra os muçulmanos, pedido ao qual o
rei prontamente acede. A frota liderada por Fuas parte para o Algarve,
onde coreo a costa, admitindo o
cronista, neste ponto, não ter encontrado fontes escritas que fornecessem
quaisquer pormenores sobre esta operação militar. De seguida, a frota
portuguesa ataca Ceuta, de onde traz grande espólio para Lisboa. Inebriados pelas
vitórias alcançadas, Fuas Roupinho e os seus homens decidem repetir o ataque à
cidade norte-africana, sendo, no entanto interceptados no estreito de Gibraltar
por 54 galés muçulmanas, que derrotam as embarcações cristãs e trazem a morte
ao próprio almirante
português, em 17 de Outubro da mesma era de 1218 (AD 1180)».
In Tiago João Queimada Silva, Os Feitos de Fuas Roupinho na Crónica de 1419,
História da Idade Média, Espaços, Poderes, Quotidianos, Universidade de Coimbra,
Revista Portuguesa de História, tomo XLIII, 2012.
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