segunda-feira, 3 de março de 2014

Amorim Viana. Antero e Sampaio Bruno. Algumas Conexões. «… as reflexões filosóficas, quer de Antero quer de Bruno, oscilam entre exigências opostas que a eles próprios não deviam aparecer como satisfatórias, e daí as contradições manifestas e reiterações de ideias que pareciam ter sido superadas»

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«Em 6 de Fevereiro de 1890, realizou-se nas instalações do Ateneu Comercial do Porto a sessão pública de apresentação da Comissão Organizadora e Instaladora da Liga Patriótica do Norte, cuja presidência foi entusiasticamente entregue a Antero de Quental e a que serviam de relatores José Pereira Sampaio (Bruno) e Basílio Teles. Como se sabe, a Liga Patriótica do Norte, bem como uma sua congénere mais apagada do Sul, soçobraram na sua esperança de um ressurgimento nacional que irrompesse como o eco de uma afronta do Ultimatum britânico do mês anterior. Antero, cujo revolucionarismo inflamado mas, no fundo, muito cordato e idealista de 20 ou 25 anos atrás, evoluíra no sentido de uma ética e uma metafísica, por assim dizer interioristas, reduzira as suas expectativas socialistas libertárias a um projecto de reformas que o seu grande amigo e correligionário Oliveira Martins, já por várias formas e sempre baldadamente, tentara fazer vingar através do rotativismo partidário monárquico e passando, mesmo, pela intriga áulica. Ora, a Liga Patriótica do Norte permite a Antero confirmar o avanço incontível da Propaganda Republicana, cujos resultados antevê como calamitosos. E, pois, com desgosto, que verifica o superior dinamismo dos membros republicanos da Liga e acaba, não apenas por demitir-se, mas até por recusar-se a participar em quaisquer manifestações contra o Tratado imposto ao Governo Português, numa atitude de profundo pessimismo nacional, que vai até ao ponto de responsabilizar, não o Governo, mas a própria nação em massa por uma decadência que, aliás, já desde há muito lastimava.
Pouco mais de um ano depois da apresentação desta Liga Patriótica, os seus relatores, Sampaio Bruno e Basílio Teles, partem para o exílio, por estarem implicados no 31 de Janeiro de 1891. Antero de Quental, que simultaneamente com a sua amarga experiência da Liga vira publicada na Revista de Portugal de Eça de Queirós o seu último e mais extenso texto filosófico de reconciliação metafísica e como que mística com a vida, suicida-se cerca de ano e meio depois, na sua cidade natal de Ponta Delgada. O ponto de partida das reflexões muito gerais que me proponho expor foi sugerido pelo facto de em Fevereiro de 1890 se terem cruzado, no edifício do Ateneu Comercial do Porto, inaugurado uns cinco anos antes, as trajectórias de duas personalidades, Antero de Quental e Sampaio Bruno, que hoje tanto nos interessam pela complexidade e/ou multiplicidade das suas reacções a um mundo epocal e nacional em grande parte comum a ambos, e ainda pelo facto de serem manifestas certas afinidades de Antero com uma figura intelectual bem conhecida do Porto do terceiro quartel do século XIX, Amorim Viana, cujo principal livro, Defesa do Racionalismo ou Análise da Fé, editado em 1865, reimpresso no ano seguinte, e reeditado em 1885, marcou profundamente a vida de Bruno, desde a sua estreia aos 17 anos, com a Análise da Crença Cristã, até A Ideia de Deus, 1902, livro ainda claramente motivado por Amorim Viana, esse tão notório e até pitoresco professor da Academia Politécnica do Porto.
É surpreendente que, na obra anteriana conhecida, incluindo a larga epistolografia já hoje editada, não havia uma única referência a Amorim Viana nem a Sampaio Bruno, figuras bem conhecidas do Porto, cidade que Antero frequentemente visitava nos anos de oitenta. A retracção anteriana perante os textos de Bruno talvez se possa compreender de um modo mais óbvio: há uma razão de ordem ideológica, que se liga com o republicanismo declaradamente jacobino do articulista portuense, a sua frequente e rasgada aceitação (mesmo quando logo a seguir condicionada, ou rectificada) de posições positivistas ou até materialistas, a sua indemovível convicção quanto ao progresso científico, técnico e socio-histórico, ideias que nos anos 80 repugnavam a Antero; e há um motivo de ordem estética, pois Antero, que se revia a si próprio como modelo clássico da moderna prosa expositiva, e que tão severamente vemos, nas cartas, a corrigir a prosa doutrinária de Oliveira Martins ou Alberto Sampaio, Antero dificilmente deveria tolerar os textos emaranhados, digressivos, repetitivos e algo autodidacticamente exibicionistas de Bruno.
Aquilo que eu mais gostaria de fazer a propósito dos pensamentos de Antero e de José Pereira Sampaio não seria bem um estudo contrastivo, em perspectiva diacrónica ou tomando como referência aquilo que em qualquer deles se pudesse considerar como fase de relativo acabamento doutrinário. Tanto quanto as posso entender ou tanto quanto elas me interessam, as reflexões filosóficas, quer de Antero quer de Bruno, oscilam entre exigências opostas que a eles próprios não deviam aparecer como satisfatórias, e daí as contradições manifestas e reiterações de ideias que pareciam ter sido superadas. O mais interessante seria verificar até que ponto Antero e Bruno ocasionalmente se aproximam ou afastam quanto a problemas mais ou menos gerais da sua época, sobretudo em Portugal. Quanto à relação entre Amorim Viana e Antero ela é, fundamentalmente, a de precursor, atendendo à óbvia anterioridade dos textos principais do professor portuense.
Esses textos são de dois tipos. Por um lado, há um conjunto de artigos sobre obras de Proudhon que saíram na revista A Península, entre 1852 e 1853, e sobre as quais não nos deteremos, pois foram já estudados e publicados. Registemos apenas que o Proudhon comentado por Amorim Viana ainda não podia ser, em 1852-1853, o autor de De la justice dans la Revolution et dans l'Église, de 58, e de Du Principe Fédératif, 1863, que exerceram uma grande, embora já posterior influência no grupo Cenáculo e das Conferências Democráticas de 1877; os artigos de Amorim Viana têm um cunho acentuadamente ético: criticam o liberalismo económico e aquilo que, mesmo nos socialistas utópicos como Proudhon, admita a regulação concorrencial do mercado interno ou internacional, a divisão do trabalho, e cerceiem a primazia espiritual da religião, da arte e dos sentimentos morais sobre a economia. Em suma, Amorim Viana parece atribuir ao Estado um certo controlo ético, incluindo certos limites ao direito de propriedade individual, formulados em termos, não propriamente socialistas, como parece admitir Victor Sá, mas em termos precursores daquilo que viria a ser a doutrina social da Igreja. Diversamente, o proudhonismo que entusiasma Antero e os seus correligionários de fins dos anos 60, início dos 70, liga-se estreitamente com o conjunto do chamado humanitarismo francês de Hugo, Michelet, Quinet, Vacherot: entre os seus traços então mais específicos e importantes, conta-se antes do mais a concepção de uma justiça como dado desde sempre imanente à consciência humana e que nos tempos modernos se apresentaria sob forma de imperativo da emancipação dos trabalhadores pelo associativismo mutualista e cooperativo, um associativismo que ascendesse até à criação de um Banco do Povo de crédito gratuito, até ao nível de federações locais, nacionais e transnacionais de produtores». In Óscar Lopes, A Busca de Sentido, Questões de Literatura Portuguesa, Editorial Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3, Colóquio-Letras, (?), 1991.

Cortesia de Caminho/JDACT