«Em 6 de Fevereiro de 1890, realizou-se nas instalações do Ateneu Comercial
do Porto a sessão pública de apresentação da Comissão Organizadora e
Instaladora da Liga Patriótica do Norte, cuja presidência foi entusiasticamente
entregue a Antero de Quental e a que serviam de relatores José Pereira
Sampaio (Bruno) e Basílio Teles. Como se sabe, a Liga Patriótica do
Norte, bem como uma sua congénere mais apagada do Sul, soçobraram na sua
esperança de um ressurgimento nacional que irrompesse como o eco de uma afronta do Ultimatum
britânico do mês anterior. Antero, cujo revolucionarismo inflamado
mas, no fundo, muito cordato e idealista de 20 ou 25 anos atrás, evoluíra no
sentido de uma ética e uma metafísica, por assim dizer interioristas, reduzira as suas expectativas socialistas libertárias
a um projecto de reformas que o seu grande amigo e correligionário Oliveira Martins,
já por várias formas e sempre baldadamente, tentara fazer vingar através do
rotativismo partidário monárquico e passando, mesmo, pela intriga áulica. Ora,
a Liga Patriótica do Norte permite a Antero confirmar o avanço incontível
da Propaganda Republicana, cujos resultados antevê como calamitosos. E, pois,
com desgosto, que verifica o superior dinamismo dos membros republicanos da
Liga e acaba, não apenas por demitir-se, mas até por recusar-se a participar em
quaisquer manifestações contra o Tratado imposto ao Governo Português, numa
atitude de profundo pessimismo nacional, que vai até ao ponto de
responsabilizar, não o Governo, mas a própria nação em massa por uma decadência que, aliás, já desde há
muito lastimava.
Pouco mais de um ano depois da apresentação desta Liga Patriótica, os
seus relatores, Sampaio Bruno e Basílio Teles, partem para o
exílio, por estarem implicados no 31 de
Janeiro de 1891. Antero de Quental, que simultaneamente
com a sua amarga experiência da Liga vira publicada na Revista de Portugal de Eça de Queirós o seu último e
mais extenso texto filosófico de reconciliação metafísica e como que mística
com a vida, suicida-se cerca de ano e meio depois, na sua cidade natal de Ponta
Delgada. O ponto de partida das reflexões muito gerais que me proponho expor
foi sugerido pelo facto de em Fevereiro de 1890
se terem cruzado, no edifício do Ateneu Comercial do Porto, inaugurado uns
cinco anos antes, as trajectórias de duas personalidades, Antero de Quental
e Sampaio Bruno, que hoje tanto nos interessam pela complexidade e/ou
multiplicidade das suas reacções a um mundo epocal e nacional em grande parte
comum a ambos, e ainda pelo facto de serem manifestas certas afinidades de
Antero com uma figura intelectual bem conhecida do Porto do terceiro quartel do
século XIX, Amorim Viana, cujo principal livro, Defesa do Racionalismo ou Análise da Fé, editado em 1865, reimpresso no ano seguinte, e reeditado
em 1885, marcou profundamente a vida
de Bruno, desde a sua estreia aos 17 anos, com a Análise da Crença
Cristã, até A Ideia de Deus,
1902, livro ainda claramente motivado
por Amorim Viana, esse tão notório e até pitoresco professor da Academia
Politécnica do Porto.
É surpreendente que, na obra anteriana conhecida, incluindo a larga epistolografia
já hoje editada, não havia uma única referência a Amorim Viana nem a Sampaio
Bruno, figuras bem conhecidas do Porto, cidade que Antero frequentemente
visitava nos anos de oitenta. A retracção anteriana perante os textos de Bruno
talvez se possa compreender de um modo mais óbvio: há uma razão de ordem
ideológica, que se liga com o republicanismo declaradamente jacobino do articulista portuense, a sua
frequente e rasgada aceitação (mesmo quando logo a seguir condicionada, ou
rectificada) de posições positivistas ou até materialistas, a sua indemovível convicção
quanto ao progresso científico, técnico e socio-histórico, ideias que nos anos
80 repugnavam a Antero; e há um motivo de ordem estética, pois Antero, que se revia
a si próprio como modelo clássico da moderna prosa expositiva, e que tão
severamente vemos, nas cartas, a corrigir a prosa doutrinária de Oliveira
Martins ou Alberto Sampaio, Antero dificilmente deveria tolerar os textos
emaranhados, digressivos, repetitivos e algo autodidacticamente exibicionistas
de Bruno.
Aquilo que eu mais gostaria de fazer a propósito dos pensamentos de
Antero e de José Pereira Sampaio não seria bem um estudo contrastivo, em
perspectiva diacrónica ou tomando como referência aquilo que em qualquer deles
se pudesse considerar como fase de relativo acabamento doutrinário. Tanto
quanto as posso entender ou tanto quanto elas me interessam, as reflexões
filosóficas, quer de Antero quer de
Bruno, oscilam entre exigências opostas que a eles próprios não deviam
aparecer como satisfatórias, e daí as contradições manifestas e reiterações de
ideias que pareciam ter sido superadas. O mais interessante seria verificar até
que ponto Antero e Bruno ocasionalmente se aproximam ou afastam quanto a
problemas mais ou menos gerais da sua época, sobretudo em Portugal. Quanto à
relação entre Amorim Viana e Antero ela é, fundamentalmente, a de
precursor, atendendo à óbvia anterioridade dos textos principais do professor
portuense.
Esses textos são de dois tipos. Por um lado, há um conjunto de artigos
sobre obras de Proudhon que saíram na revista A Península, entre 1852 e 1853, e sobre as quais não
nos deteremos, pois foram já estudados e publicados. Registemos apenas que o Proudhon
comentado por Amorim Viana ainda não podia ser, em 1852-1853, o autor de De la justice dans la Revolution et dans
l'Église, de 58, e de Du Principe Fédératif, 1863, que exerceram uma grande, embora
já posterior influência no grupo Cenáculo e das Conferências Democráticas de
1877; os artigos de Amorim Viana têm um cunho acentuadamente
ético: criticam o liberalismo económico e aquilo que, mesmo nos socialistas utópicos
como Proudhon, admita a regulação concorrencial do mercado interno ou
internacional, a divisão do trabalho, e cerceiem a primazia espiritual da
religião, da arte e dos sentimentos morais sobre a economia. Em suma, Amorim
Viana parece atribuir ao Estado um certo controlo ético, incluindo certos
limites ao direito de propriedade individual, formulados em termos, não propriamente
socialistas, como parece admitir Victor Sá, mas em termos precursores
daquilo que viria a ser a doutrina social da Igreja. Diversamente, o
proudhonismo que entusiasma Antero e os seus correligionários de fins dos anos
60, início dos 70, liga-se estreitamente com o conjunto do chamado
humanitarismo francês de Hugo, Michelet, Quinet, Vacherot: entre os seus traços
então mais específicos e importantes, conta-se antes do mais a concepção de uma
justiça como dado desde sempre imanente à consciência humana e que nos tempos
modernos se apresentaria sob forma de imperativo da emancipação dos trabalhadores
pelo associativismo mutualista e cooperativo, um associativismo que ascendesse
até à criação de um Banco do Povo de crédito gratuito, até ao nível de federações
locais, nacionais e transnacionais de produtores». In Óscar Lopes, A Busca de
Sentido, Questões de Literatura Portuguesa, Editorial Caminho, Lisboa, 1994,
ISBN 972-21-0986-3, Colóquio-Letras, (?), 1991.
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