O passado relativiza-se no presente
«(…) Como é que se pode seguir esse caminho
estreito? Sugiro que existem três momentos de pensamento:
- a análise sistemática e historizada;
- a escolha moral;
- as implicações políticas.
São três tarefas
diferentes e distintas, mas muito imbricadas umas nas outras e, no fim de
contas, indissociáveis. Cada um de nós realiza os três momentos cada vez que
pensa. E fazê-lo com conhecimento de causa é sempre mais sensato. Parece-me que
Godinho o demonstrou
biograficamente, oferecendo-nos o exemplo de como ser um intelectual coerente,
isto é, comprometido e público. Os três momentos de pensamento são sucessivos e
cada tarefa tem as suas regras próprias. É preciso começar sempre pela análise.
Quando não, arriscamo-nos a fazer não poucas asneiras. E este esforço é
contínuo; não termina nunca. Todos nós temos um fundo de conhecimentos
limitado. E o mundo está em constante mudança. Há, pois, sempre muito a
aprender, muito a analisar, muito a repensar e, sobretudo, muito a des-pensar. E, evidentemente, e por
causa disso, não devemos demorar demasiado a revelar o que supomos ter
aprendido. Esperar pela certeza é esperar pelas calendas gregas.
Mas uma vez feita a
análise, como evitar as escolhas
morais? Elas estavam já implícitas na nossa escolha de tema, de
variáveis, de dados, e de métodos, mau grado todos os nossos esforços para
minimizar as tendenciosidades mais evidentes e para proporcionar uma exposição
que seja convincente e resista à demolição fácil dos nossos críticos. Não
obstante, temos de assumir as nossas simpatias, os nossos juízos. Como poderíamos sugerir que os que são
menos aptos para a análise são, apesar disso, mais aptos para as escolhas
morais que dela derivam? Ninguém pode evitar as escolhas morais,
sobretudo, diria eu, um intelectual. Se não, o intelectual é como alguém que
coloca na rua um explosivo potencial sem o confessar e deixando aos outros
o encargo de o neutralizar. Não estou a dizer que as escolhas morais do
intelectual são as únicas possíveis. Longe disso. Toda a gente pode e
deve tirar as consequências da análise. O que estou a dizer é que o
intelectual não tem o direito de dizer que se desliga deste dever comum.
Aliás, estou a dizer que ele nunca se desliga. E quando
finge fazê-lo, é uma maneira de aceitar, talvez mesmo de apoiar, as escolhas de
outros, sobretudo dos que detêm o poder.
Mas não chegámos ainda
ao fim da participação inevitável do intelectual na vida pública. O
intelectual compromete-se, por natureza, a analisar a forma de levar à prática
as escolhas morais que derivam da sua análise. Isto é uma tarefa política, no
sentido amplo da palavra político.
Há muitos meios de prosseguir essa análise política, através da vida
política pública, através da imprensa, através dos testemunhos. Pouco
importa. Depende das situações locais diferentes, das possibilidades que se
apresentam a todos. Mas, mais uma vez, não há alternativa. O intelectual que tenta evitar esta parte do seu papel cede o seu
dever, deliberadamente ou não, aos outros. Não basta dizer que se
participa como cidadão. Participa-se
também como intelectual. E isto porque outros usam as análises
sistemáticas e historizadas já feitas para justificar as suas políticas. O
intelectual é, pois, obrigado a descer à arena para defender a boa
interpretação daquilo que escreveu ou que escreveram os seus colegas, sobretudo
aqueles que não estão em condições de o fazer eles próprios. O intelectual
permanece sempre um cidadão intelectual, com o encargo perpétuo de ajudar à
clareza e à clarificação
das decisões.
Uma visão de futuro
Ouso fazer apelo à obra
e ao exemplo de Godinho para traçar
um programa de trabalho para o nosso novo século. Este resume-se à palavra de
ordem já lançada e bem conhecida da história total, a que Godinho e um bom número de outros investigadores se dedicaram desde
há bastante tempo mas que só constitui um compromisso para uma minoria de
investigadores pelo mundo fora, uma minoria que continua bastante sitiada. Mas que quer dizer na prática a história
total? Parece-me que há quatro debates a resolver, quatro caminhos a
seguir». In Immanuel Wallerstein, A
descoberta da economia-mundo, Comunicação ao colóquio Le Portugal et le
Monde; Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho, Paris, 2003, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 69,
2004.
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