Ana de Castro e o Salvamento da Clepsydra
«(…) Lidas hoje, as duzentas e cinquenta páginas deste livro nada perderam
da sua rebeldia, da contida indignação polémica, da veemência humanista, pondo
a nu as resignações e as frivolidades, impostas às mulheres e por
elas aceites, e preconizando um conjunto de reformas, desde a alteração da lei
civil e fiscalização do trabalho das menores à criação de creches, escolas
infantis e asilos-oficinas. O estilo
é acessível, vibrante, eloquente, lembra o do seu mestre Garrett. Nesse tempo,
deve ter sido também profundamente detestada: era incómoda, persistente e culta
e, pior, provinha de um estrato aristocrata... Graças a Fátima Ribeiro Medeiros
sabemos que quando começou, em 1901,
a publicar os folhetos feministas, sendo o primeiro As Mães Devem Amamentar os Seus
Filhos, era a autora quem os distribuía gratuitamente nas reuniões
feministas e..., à porta das fábricas de conservas de Setúbal. A jovem
filha do Meritíssimo Juiz de Direito devia ser, na pacata cidade, um verdadeiro
escândalo.
Ao mesmo tempo que escrevia para as crianças e lutava pela melhoria da
condição feminina, tal como hoje se luta contra a violência sobre as mulheres, Ana de Castro Osório publicava
novelas e romances, aliás injustamente esquecidos; e foi também a pioneira
autora de livros escolares, acessíveis e bem ilustrados, aprovados em Portugal
e nas escolas públicas dos Estados de São Paulo e de Minas Gerais. O primeiro, A Minha Pátria (1906),
foi adoptado oficialmente em plena monarquia. Pessoa de fibra e de carácter, graças
à sua modesta, mas orgulhosa, independência económica como escritora, editora e
distribuidora dos próprios livros, talvez a primeira mulher, entre nós, a viver
da actividade literária, desdenhou sempre o poder. Exerceu um único cargo, o de
subinspectora do trabalho feminino, e
recusou aos amigos republicanos e maçons a Ordem de Santiago, aceitando apenas,
mais tarde, a Ordem de Mérito Agrícola e Industrial, que premiou uma propaganda
de muitos anos em prol da arborização, da silvicultura e do ressurgimento das
indústrias caseiras tradicionais, entre elas as rendas e os tapetes.
Em 1911 acompanhou ao Brasil
o marido, Paulino Oliveira, que tinha sido nomeado Cônsul de Portugal em
São Paulo, transferindo para esta cidade, na própria casa, conforme era seu
hábito, a actividade editorial que sempre manteve conjuntamente com a criação
literária e a intervenção cívica. Foi na capital paulista que Paulino
Oliveira faleceu, em 1914. Até
essa data, não se encontra vestígio de correspondência com Camilo; esta só se reata dois anos depois da viuvez de Ana. Camilo escreve-lhe uma belíssima carta, de Macau, a 5 de Novembro
de 1916, ou seja, vinte e três
anos depois da desafortunada declaração. A necessidade de confiar as velhas ulcerações incuráveis da minha
alma, e o primeiro lugar que Ana ocupa nas suas afeições, são ditas
com toda a veemência, e com paixão que se adivinha irreprimível:
- É uma coisa curiosa como, sendo eu absolutamente incapaz, por uma abulia sem remédio, em parte congénita e em parte agravada (por culpa minha, por culpa alheia e por diversas razões de que ninguém tem culpa) de manter com as pessoas a quem mais amo uma correspondência assídua ou, ao menos, duradoura, toda a minha intensa vida afectiva se sustenta da lembrança e do amor de três ou quatro pessoas com quem eu me encontro de anos a anos, e entre as quais, desde a minha última estada em Portugal, V. Exa. ocupa o primeiro lugar.
Antes, dera-se algo importantíssimo. Depois da viuvez de Ana, dera-se em fins de 1915, princípios de 1916, o convívio pessoal entre os dois.
Como escreve João de Castro Osório, Camilo,
amigo de toda a minha família [...],
jantava e seroava
em nossa casa invariavelmente
duas vezes por semana». In António
Osório, O Amor de Camilo Pessanha, edições ELO, obra apoiada pela Fundação
Oriente, colecção de Poesia e Ensaio, Linha de Água, 2005, ISBN 972-8753-43-8.
Cortesia da F. Oriente/Linha de Água/JDACT