Variações sobre uma Ideia de Oriente
«(…) O imperador manchu surgia como o exemplo perfeito da submissão do
poder do déspota às leis fundadas no direito e na ordem natural. Por sua vez, o
seu édito de tolerância ou édito sagrado
em relação ao cristianismo contrastava com o espírito de perseguição e
intolerância religiosa que vigorava na Europa. Se somarmos a tudo isto a época
de florescimento económico que vigorou na China durante a sua Revolução
Industrial, compreendemos a razão de ser do entusiasmo de muitos filósofos das
Luzes, pelo Extremo-Oriente. Quando a Revolução Francesa eclode na Europa, nos
finais do século XVIII, a China deixa de constituir qualquer padrão de
referência no imaginário europeu. A imagem de uma figura parental que conjugava
na sua pessoa a autoridade política, moral e religiosa passava a ser vista,
pelo contrário, com suspeita. Será, aliás, nesta época que se iniciará o grande
fascínio pela Índia, que irá pautar grande parte das crenças do romantismo
europeu. Mas a razão deste encantamento é completamente distinta daquela que
animou o Século das Luzes, na medida em que a Índia não surgia aos olhos
europeus como modelo de governação ou de organização social. Com efeito, o
interesse pela Índia era mínimo em termos políticos. O sistema de castas indiano
- casta, como se sabe, é uma palavra
de origem portuguesa para designar a linhagem familiar ou social, ou de varna (varna, por sua vez, é uma
palavra sânscrita que significa fundamentalmente cor, mas também véu),
termo com uma conotação racial mais acentuada (embora a cor não se refira
tanto à cor da pele, mas sim ao tipo de energia, ou guna, inerente a cada ser humano), retirava qualquer encanto
à sociedade indiana. Se somarmos a esta conhecida estratificação social, que se
foi tornando cada vez mais rígida ao longo da história indiana, a existência de
uma miríade de jatis ou grupos
endogâmicos associados a corporações profissionais, assim como às distinções
entre as diferentes fases da vida, Áshrama,
e aos múltiplos deveres específicos ou svadharma,
torna-se claro que este quadro corporativo de sabor feudal afastava qualquer
simpatia pela organização político-social da Índia Antiga. Num momento
em que as pretensões coloniais inglesas e francesas pelo domínio do
subcontinente indiano assumiam a face da evidente rapina, não só a visão
ideológica ocidental da sociedade indiana era ilustrada com os piores traços,
como se esquecia o facto histórico de a India, como aliás a China, ter iniciado
a sua revolução industrial numa época bem anterior à europeia. Recalcava-se igualmente
a ambiguidade com que o sistema de castas era vivido na cultura indiana, como
se deixa claramente surpreender num tratado do século XI, do célebre viajante e
cientista islâmico Alberuni (Al-Biruni), quando este assinala que
na visão dominante de Krishna, uma das principais divindades da religião
hindu, as distinções de casta e de género são totalmente irrelevantes.
E, no entanto, apesar da visão negra que o Ocidente tinha da sociedade indiana,
os europeus apaixonam-se perdidamente pela cultura indiana. A este facto
devem-se as traduções francesas de Anquetil-Duperron e inglesas da Sociedade
Asiática de Calcutá, criada em 1784,
sob a inspiração e mestria de William Jones. O facto de, dois século antes,
padres jesuítas portugueses terem traduzido para a língua portuguesa partes
significativas de obras centrais da religião hindu não parece ter provocado
ecos significativos na cultura europeia. Segundo Donald Lach, o autor da obra
monumental Ásia in the Making of Europe (1965), grande parte dos
livros foi traduzida em português, em meados do século XVI, e manuscritos com esta
tradução encontram-se mais ou menos perdidos tanto em Évora como em Roma. Na
verdade, só nos finais do Século das Luzes a Europa se rende à
existência de uma literatura prodigiosa, exuberante e especulativa proveniente
da distante Índia». In Carlos João Correia, Variações sobre uma Ideia de Oriente, João
Gouveia Monteiro, Diálogo de Civilizações, Viagens ao Fundo da História em
Busca do Tempo Perdido, Reitoria da Universidade de Coimbra, 2003, Imprensa da
Universidade, Coimbra, 2004, ISBN 972-8704-37-2.
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