De acordo com o original.
O
capitão ‘Bonina’
«(…) António da Fonseca
homisiou-se em Moura, e ahi, onde n’aquelle tempo estava mais activa a guerra
entre Portugal e Castella, sentou praça de soldado, cedendo á sua natural
inclinação. Moço, gentil e poeta, lançava-se na vida airada que os ócios da
campanha ageitavam. Em tempo de guerra, o prestigio da farda sobe de ponto, porque
o engrandece a coragem nos combates. António da Fonseca saboreou os gozos que a
sua estrella e os ademans da sua pessoa lhe proporcionavam, mas ao cabo de dois
ou três annos embarcou para o Brazil na companhia de um desembargador seu
parente, talvez por que as justiças da Vidigueira instassem pela condemnação do
homicida.
Durante a viagem, sombras de
melancolia, intermittencias de desalento entibiaram por vezes o animo do moço
expatriado. Era natural que assim acontecesse nas horas em que o enxame alado
de gratas recordações viesse rondar as azas em torno do seu espirito saudoso.
Diz-se que o piloto da nau lhe dera a ler um livro mystico, a vida de Santa
Gertrudes, e que esse livro o impressionára. É um ponto de vista falso, a meu
vêr, como logo direi. Terminada a viagem, os encantos de um paiz desconhecido
excitaram-lhe a imaginação, que só ephemeramente havia abatido o vôo durante a travessia
do oceano. Recomeçára uma vida de prazeres que prostram o corpo e o espirito, e
em que as intermittencias de cansaço e arrependimento não são raras. Fallaram-lhe
em casar na Bahia; casamento de conveniência, certamente. Refutou a proposta.
Conhecia demasiadamente as mulheres para que um casamento de interesse lograsse
tental-o. Segundo o ponto de vista mystico do seu principal biographo, e de
outros, foi em casa de um amigo, dos que o aconselhavam a casarse, que António
da Fonseca encontrou as obras espirituaes de frei Luiz de Granada. Abriu ao acaso.
Leria o bastante para receber uma impressão mais forte do que aquella que a Vida de Santa Gertrudes lhe haveria
produzido. Pediu ao amigo que lhe emprestasse o livro. Levou-o, meditou sobre as
suas paginas, e o cansaço da vida mundana pareceu-lhe maior. O bispo do Grão-Pará
traz nas suas Memorias a seguinte noticia: Este venerável frade (frei António das Chagas) foi muito amigo dos
benedictinos entre os quaes esteve retirado quando matou um homemno Brazil,
sendo soldado. O padre Manoel Godinho nào falla d’este novo homicidio, se o
houve; menciona apenas um. Não tendo occultado o primeiro, não ha razào
plausível para acceitar o propósito de occultar o segundo, tanto mais que a
repetição do delicto tornaria ainda maior a conversão.
É
possível que o bispo do Grão-Pará falseasse a noticia por incorrecção de
syntaxe, e que somente quizesse dizer, entre os quaes esteve retirado no Brazil
quando matou um homem, sendo soldado. Da convivência de António da Fonseca com
os religiosos brazileiros, especialmente na Bahia, faz menção o padre Godinho.
Bem podia ser que António da Fonseca se acostasse aos benedictinos, que eram
poderosos, para garantir a tolerância das justiças da metrópole quanto ao crime
de assassínio praticado em duello. Mas para director espiritual escolheu um
padre da Companhia. Elle mesmo o diz em carta para a Bahia a um amigo: ... vá-se á Companhia, que assim o fiz eu,
quando lá estive; tome um pai espiritual, que achará muitos, que zelam a
salvação das almas, peça-lhe a instrucção ou conselho, etc. Defrontou-se
António da Fonseca Soares com a recordação dos seus erros e desvarios, e
sorriu-lhe a ideia de uma rehabilitaçào que lhe podesse dar o ceu depois de
haver gozado a terra. Os contrastes são sempre impressivos. Mas os gozos
mundanos teem o que quer que seja de embriaguez: aborrecem depois que se libam
copiosamente, e tentam de novo quando a gente imagina que a lição do aborrecimento
lhe aproveitára». In Alberto Pimentel, Vida Mundana de um Frade Virtuoso, Perfil
Histórico do Século XVII, PQ9191A65Z18, Livraria António Pereira, Lisboa, 1889.
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