«Indagava o homem o passado, os pés assentes
no presente, a alma, quem sabe?,
a lançar pontes para o futuro. A quem assim age, nesses longínquos anos de
Quinhentos, dão-lhe o nome de Humanista.
Sentado à beira do tempo, vive o afã de descobrir a palavra e, nela, a semente
de tudo, da vida e da morte, do
amor e da tristeza, da verdade
e da invenção, da história e da profecia, da prece e do canto. Contempla o
mundo e os anos que carrega; e detém-se na imitação de um tempo preciso desse
percurso, porventura sem se dar conta do caminho percorrido: muitos séculos
haviam passado. Mas é aí, à distância de séculos, como se fora possível não os sentir,
que perscruta raízes e busca firmá-las. Mais não possui, para tanto, que a
palavra. E dela faz o seu arrimo.
Jerónimo Cardoso era, acima de tudo, um daqueles humanistas
que faziam da palavra o seu instrumento de trabalho. Não é por acaso que ficou conhecido como lexicógrafo
(um dos primeiros e mais notáveis que tivemos) e, também gramático, o mesmo é
dizer, um filólogo, como, mais tarde, viria a definir-se quem assim
indagava a palavra, na sua essência, nas suas origens, nos seus sentidos. Não
se quedou, porém, aí a sua actividade. A vasta epistolografia que nos legou
demonstra um intenso diálogo com os humanistas seus contemporâneos. Cultivou,
além disso, a oratória, um dos domínios em que os Humanistas do Renascimento
foram mais férteis. E foi, enfim, poeta. Perfeito na forma, como
convinha a quem fazia da palavra o seu instrumento de eleição; menos inspirado,
porventura, no conteúdo, como era mais ou menos corrente entre os poetas
novilatinos do seu tempo. Nem surpreende que assim seja. A língua da poesia é,
por essência, a língua do coração. Trazemo-la agarrada à alma, como se fora uma
raiz. É a língua com que choramos, a língua com que rimos, a língua com que amamos.
Em boa parte dos casos, posto que o Latim fosse língua corrente no século XVI,
tal como o Inglês o é nos dias de hoje, era, acima de tudo, a língua dos actos
formais. Dominava na Retórica, na Ciência, na Filosofia; era, ainda, a língua
da Gramática e também da Epistolografia. Isso, porém, não bastará, por certo,
para fazer dos seus cultores poetas. Salvo raras excepções, por isso, entre os
grandes poetas desse tempo figuram, acima de tudo, os que compuseram em
vernáculo; raramente com eles ombreiam os que usaram o Latim como veículo de
expressão poética. Não é muito frequente encontrarmos nos seus textos aquela
espécie de centelha mágica que faz do poema uma obra de arte.
Isso, no entanto, não vale por dizer que Jerónimo
Cardoso fosse um poeta tosco; nem sempre o era no conteúdo, muito menos na
forma. Os seus poemas tratam uma multiplicidade de temas. Muitos deles convencionais,
que hoje diríamos estereótipos, como provará quem ler o excelente contributo
para o conhecimento deste Humanista, que é a edição dos seus escritos, em boa
hora levada a cabo por Telmo Reis. Mas nem todos assim podem considerar-se.
Alguns há que deixam perceber as suas emoções, os seus afectos, numa
tentativa de aproximação àquilo que deverá ser a essência da poesia lírica. Alguns,
dedicou-os à sua terra natal, Lamego. A eles se voltará adiante, por breves
instantes. Outros falam de pessoas. De mulheres, também, ainda que o amor celebrado
em seus versos seja um tanto artificial, dir-se-ia sem chama. E de amigos, com
quem se carteou, com quem manteve estreitas relações. Especial atenção merecem
aqueles onde se despede de quem parte, num assomo de emotividade que não pode
deixar de sublinhar-se, ou outros onde saúda um amigo acabado de regressar ao
seu convívio e que acolhe com inusitada alegria. É desses, de uns e de outros,
em especial (mas não só), que se falará aqui.
Os primeiros, os cantos de despedida, são,
valha a verdade, filhos do seu tempo. A arte (e a literatura) viviam sob a
égide do Maneirismo, esse
período que antecede o Barroco.
Tempo de encruzilhada, próprio de emoções exacerbadas, nascidas de angústias
múltiplas que assaltavam o homem e esta sua época, ou, se se preferir, com mais
propriedade, que assaltavam o homem nesta época. A poesia portuguesa, como
Vítor Aguiar Silva demonstrou, é pródiga em exemplos. Aquela que nos legaram os
poetas portugueses que escreveram em Latim não poderia ser diferente. É assim Jerónimo
Cardoso, por exemplo, quando se despede de Inácio Morais, no momento em que
ele partia de Lisboa, talvez para as distantes terras de Bragança. Os versos
estão perpassados de emoção e pesar, porventura excessivos e desproporcionados
em relação ao motivo que lhes subjaz. É um canto choroso, este que a Musa lhe traz; um poema doloroso, carregado
de luto e tristeza, que hão-de dobrar os seus queixumes e fazer jorrar uma
torrente de lágrimas. Imagem excessiva, como é bom de ver, e que mais não é que
o portal de uma construção poética rebuscada, toda ela fiel a um espírito de
emoções exacerbadas e, porventura, doentias». In Carlos Ascenso André, Jerónimo Cardoso, Um Poeta de Afectos, Revista Humanitas nº LXII, Universidade de
Coimbra, 2010, ISSN 0871-1569.
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