quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Jerónimo Cardoso. Um Poeta de Afectos. Carlos A. André. «A língua da poesia é, por essência, a língua do coração. Trazemo-la agarrada à alma, como se fora uma raiz. É a língua com que choramos, a língua com que rimos, a língua com que amamos»

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«Indagava o homem o passado, os pés assentes no presente, a alma, quem sabe?, a lançar pontes para o futuro. A quem assim age, nesses longínquos anos de Quinhentos, dão-lhe o nome de Humanista. Sentado à beira do tempo, vive o afã de descobrir a palavra e, nela, a semente de tudo, da vida e da morte, do amor e da tristeza, da verdade e da invenção, da história e da profecia, da prece e do canto. Contempla o mundo e os anos que carrega; e detém-se na imitação de um tempo preciso desse percurso, porventura sem se dar conta do caminho percorrido: muitos séculos haviam passado. Mas é aí, à distância de séculos, como se fora possível não os sentir, que perscruta raízes e busca firmá-las. Mais não possui, para tanto, que a palavra. E dela faz o seu arrimo.
Jerónimo Cardoso era, acima de tudo, um daqueles humanistas que faziam da palavra o seu instrumento de trabalho. Não é por acaso que ficou conhecido como lexicógrafo (um dos primeiros e mais notáveis que tivemos) e, também gramático, o mesmo é dizer, um filólogo, como, mais tarde, viria a definir-se quem assim indagava a palavra, na sua essência, nas suas origens, nos seus sentidos. Não se quedou, porém, aí a sua actividade. A vasta epistolografia que nos legou demonstra um intenso diálogo com os humanistas seus contemporâneos. Cultivou, além disso, a oratória, um dos domínios em que os Humanistas do Renascimento foram mais férteis. E foi, enfim, poeta. Perfeito na forma, como convinha a quem fazia da palavra o seu instrumento de eleição; menos inspirado, porventura, no conteúdo, como era mais ou menos corrente entre os poetas novilatinos do seu tempo. Nem surpreende que assim seja. A língua da poesia é, por essência, a língua do coração. Trazemo-la agarrada à alma, como se fora uma raiz. É a língua com que choramos, a língua com que rimos, a língua com que amamos. Em boa parte dos casos, posto que o Latim fosse língua corrente no século XVI, tal como o Inglês o é nos dias de hoje, era, acima de tudo, a língua dos actos formais. Dominava na Retórica, na Ciência, na Filosofia; era, ainda, a língua da Gramática e também da Epistolografia. Isso, porém, não bastará, por certo, para fazer dos seus cultores poetas. Salvo raras excepções, por isso, entre os grandes poetas desse tempo figuram, acima de tudo, os que compuseram em vernáculo; raramente com eles ombreiam os que usaram o Latim como veículo de expressão poética. Não é muito frequente encontrarmos nos seus textos aquela espécie de centelha mágica que faz do poema uma obra de arte.
Isso, no entanto, não vale por dizer que Jerónimo Cardoso fosse um poeta tosco; nem sempre o era no conteúdo, muito menos na forma. Os seus poemas tratam uma multiplicidade de temas. Muitos deles convencionais, que hoje diríamos estereótipos, como provará quem ler o excelente contributo para o conhecimento deste Humanista, que é a edição dos seus escritos, em boa hora levada a cabo por Telmo Reis. Mas nem todos assim podem considerar-se. Alguns há que deixam perceber as suas emoções, os seus afectos, numa tentativa de aproximação àquilo que deverá ser a essência da poesia lírica. Alguns, dedicou-os à sua terra natal, Lamego. A eles se voltará adiante, por breves instantes. Outros falam de pessoas. De mulheres, também, ainda que o amor celebrado em seus versos seja um tanto artificial, dir-se-ia sem chama. E de amigos, com quem se carteou, com quem manteve estreitas relações. Especial atenção merecem aqueles onde se despede de quem parte, num assomo de emotividade que não pode deixar de sublinhar-se, ou outros onde saúda um amigo acabado de regressar ao seu convívio e que acolhe com inusitada alegria. É desses, de uns e de outros, em especial (mas não só), que se falará aqui.
Os primeiros, os cantos de despedida, são, valha a verdade, filhos do seu tempo. A arte (e a literatura) viviam sob a égide do Maneirismo, esse período que antecede o Barroco. Tempo de encruzilhada, próprio de emoções exacerbadas, nascidas de angústias múltiplas que assaltavam o homem e esta sua época, ou, se se preferir, com mais propriedade, que assaltavam o homem nesta época. A poesia portuguesa, como Vítor Aguiar Silva demonstrou, é pródiga em exemplos. Aquela que nos legaram os poetas portugueses que escreveram em Latim não poderia ser diferente. É assim Jerónimo Cardoso, por exemplo, quando se despede de Inácio Morais, no momento em que ele partia de Lisboa, talvez para as distantes terras de Bragança. Os versos estão perpassados de emoção e pesar, porventura excessivos e desproporcionados em relação ao motivo que lhes subjaz. É um canto choroso, este que a Musa lhe traz; um poema doloroso, carregado de luto e tristeza, que hão-de dobrar os seus queixumes e fazer jorrar uma torrente de lágrimas. Imagem excessiva, como é bom de ver, e que mais não é que o portal de uma construção poética rebuscada, toda ela fiel a um espírito de emoções exacerbadas e, porventura, doentias». In Carlos Ascenso André, Jerónimo Cardoso, Um Poeta de Afectos, Revista Humanitas nº LXII, Universidade de Coimbra, 2010, ISSN 0871-1569.

Cortesia da UCoimbra/JDACT