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Aí está outra coisa: a idade.
Tanto como o nome, ainda menos que o nome, também a idade não deveria ter
grande importância. Mas tem. Oh, se tem! Sofri horrores, aos dezasseis
anos, por causa de uma belgazita, desengonçada e petulante, que com a família
se refugiara na Foz do Arelho e de um
Verão para o outro descobrira ter afinal mais dez meses que eu: o suficiente,
em suma, para passar a tratar-me como a um fedelho, depois de me ter
embriagado, nas férias do ano anterior, entre os abruptos rochedos de uma
deserta e minúscula praia, com a ilusão de já eu ser um homenzinho. Só na
vazante, com relativa facilidade, se alcançava pela areia aquele retiro;
depois, mal a maré subia, logo nos sentíamos isolados, livres, seguros, como que
fora do mundo ou no princípio do mundo. Durante horas e horas ninguém nos punha
a vista em cima. E a minha mãe, apercebendo-se de tudo, mas a fingir que não,
limitava-se, no primeiro desses Verões, a entre dentes troçar da belgazita
quando ela dizia septante em vez de soixante-dix, a censurar-lhe, também de
longe, a exiguidade ou o espalhafato das toilettes,
a exclamar em privado com semblante sofredor: Que modos, Madonna mia! Nunca se viu disto aqui no hotel! O meu
padrasto, por sua vez, designava a minha amiga como esse pau de virar tripas; e punha em dúvida que alguém de bom gosto
pudesse achar graça àquele cabide.
Todavia, no Verão seguinte, ao verem-me só e dependurado, mostravam-se ambos
sempre dispostos a reconhecer que a pequena já nem parecia a mesma, que se
tinha até tornado muito galante. Mais
tarde, aos vinte e quatro anos, vim a sofrer vergonhas de outra ordem, graças a
uma portuguesíssima platinada, toda olhos e boca, toda pernas e peito, que
vivia por conta de um africanista e cujo sonho mais constante era o de vir a
entrar para o teatro: apesar disso, confessava, com tocante coragem, que já tinha
trinta e dois anos. Daí o meu vexame: o de a achar demasiado velha. E uma noite, em casa dela, nas
vizinhanças do Bairro dos Actores, com o africanista oportunamente em África,
houve uma cena dos diabos, até quase ao nascer do Sol, quando por acaso
descobri, graças ao bilhete de identidade esquecido em cima de um toucador (a
que ela chamava psyché), que
na realidade tinha afinal trinta e seis. Oh, as lágrimas da planturosa
platinada diante da evidência dos factos! Oh, a minha vergonha, e também a minha
relutância, daí para a frente, mesmo com o africanista em África, em ir com ela
ao cinema ou a qualquer casa de chá! Oh, inapagável ferrete de ignomínia,
depois da já conhecida e escandalosa diferença dos oito anos, que abismo!,
aquela revelação suplementar de mais esses míseros quatro centésimos de um
século.
Tudo
se paga; e da maneira que a gente menos espera. Trinta e seis anos tem agora...
a Y. Trinta e cinco na ocasião em
que nos conhecemos. Menos vinte e um do que eu. Desta vez, vexame, se fosse
caso disso, só às avessas deveria senti-lo. Não, não sinto. Antes uma quase
vaidade por fora, um certo orgulho por dentro; e talvez alguma inquietação, ou
alguma perplexidade, bastante mais no fundo. Mas o orgulho é o que geralmente
predomina. Sobretudo por ter sido ela quem... Como hei-de dizer? Por ter sido ela quem veio ao meu
encontro, quem afinal espontaneamente..., me escolheu. E da maneira menos hipócrita. Da maneira mais simples,
espantosamente mais directa. Como se o orgulho me importasse! O que importa é a
luminosa plenitude que a Y trouxe à
minha vida, numa altura em que eu já não esperava, por parte das mulheres,
senão esses fogachos de admiração com que elas próprias se iludem, ou se
pretendem promover na opinião dos outros. Isto para não falar de favores mais
ou menos venais (…e se me desse um
daqueles desenhos?; uma
água-de-colónia é que me fazia agora jeito... Para nem mesmo falar de
breves aventuras desinteressadas, mas sem véspera nem dia seguinte. Muitas das
aves que nos últimos anos aqui vieram ao estúdio não chegaram a projectar na
maioria destas paredes sequer a sombra das suas asas Semiabertas: umas, porque
simplesmente visavam a altura desse divã; outras, porque apenas as empolgava a
perspectiva de poder saber-se, de ao menos saberem elas, que por aqui tinham passado;
outras, ainda, porque talvez unicamente esperassem, através deste trânsito, uma
oportunidade de fugir de si próprias; quase todas, enfim, porque tinham mesmo pressa.
Da parte da Y, além de um
desinteresse absoluto, o mínimo de concessões ao odioso despotismo do Tempo. Ah,
a primeira manhã em que ela aqui entrou! A partir de então, foi como se tudo
isto se tivesse transfigurado.
Esse
divã, estes gessos, estes moldes, esta poltrona, estes livros, até esse
calorífero aí adiante , até ali ao lado aqueles cavaletes, aqueles taipais,
aqueles ferros de sustentação, e essa cómoda, e o espelho por cima da cómoda, e
o outro espelho, este, aqui à largura de toda a parede, tudo isto passou a
viver de outra maneira, não propriamente com uma nova luz ou numa nova
atmosfera (essas variam de cada vez que ela aqui vem), mas como se entre tudo
isto se tivesse estabelecido, de repente, e para sempre, uma nova
correspondência de volumes. Até a mulher da limpeza, que é viva e batida como
os seixos de uma cascata, nunca mais se atreveu, como dantes tão amiúde
acontecia, a ligeiramente arredar esta poltrona ou esse divã, a minimamente
alterar a disposição deste ou daquele tapete, a sequer imprimir uma diferente
orientação ao mostrengo desse calorífero. Já agora, não resisto a acrescentar:
com tal mostrengo é que particularmente contrasta, nos dias de Inverno, o xaile
branco da Y». In David Mourão-Ferreira, Um Amor
Feliz, Editorial Presença, Lisboa, 1986.
Cortesia
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