«(…) Nós somos o que resta de vivo no Mosteiro, depois que os frades foram
expulsos e o abandonaram. A narrativa que te farei é aquela que pude ler em
muitos papéis antigos e ouvi de frades velhos, que são os depositários da
história verdadeira. Aquela que não vem nos livros. A outra, a que vem nos livros,
é apenas o pouco que ficou no rasto das pedras e documentos, e o tempo ou a
desventura das circunstâncias não fez desaparecer. O azar e o tempo, juntamente
com a malícia do entendimento, são os grandes consumidores das memórias. Para
acertar é preciso ir costurando hagiografias com a liberdade da reconstrução,
até recriar o que aconteceu na terra e aconteceu aos monges. Se se quer provar
por documento o passado, é quase como se passado não houvesse. E ele aí está
gritante, parte do que somos e não podemos rejeitar. Maus tempos estes em que
se não enxerga o futuro. O desconcerto da vida e da morte fogem ao nosso
entendimento. No silêncio da noite fico só, eu, a dialogar comigo, como um estranho
outro que está dentro de mim, a relembrar tudo o que ficou para trás no tempo. Durante
o dia escondo-me entre as sepulturas, para além da porta dos mortos, e ouço as
cigarras cantarem, a dizerem que a natureza não parou e a vida mais parece um
lençol de águas serenas ao reflexo da canicular que abrasa por fora e apoquenta
por dentro. E o chicote das lembranças aflige ainda mais, levando a nossa vida
pala um ponto que ficou para trás, na poeira do tempo. A vida inventa-se
sempre, numa aragem de surpresas. Inventa-se diferente, por ser livre de o ser
e dar largas à realidade de inventar. Enganai-vos
à alma, frei Elias, para não ficardes louco. A alma, essa nostalgia do
eterno! O homem fica incompleto sem o seu passado. Passado não são os actos, na
voragem do esquecimento. É aquilo que o pensamento avançou para fazer crescer o
homem. Há um desassossego hostil germinando sempre na terra de uma lúcida
mediocridade. A alma, frei João Chiqueda! É aí que está a raiz das coisas.
Fiz uma promessa. Não deixarei o Mosteiro sem acabar o que resolvi.
Recolher o pensamento. Depois irei ao encontro da vida. Os dois homens partilham
no Claustro do Silêncio, junto à antiga porta do calefactório. Subamos, mesmo
em frente, pela escada que leva ao dormitório. É o meu último estádio, no
deambular nocturno. Tenho que vê-la. A porta dos sinais. Vês. É bom como uma
vertigem. Fica a meio da abertura da nave. Em baixo fica o transepto, a visão
dos túmulos e o mundo que nos entrava pela nave dentro. Vê em volta. Estão gravadas
todas as marcas de canteiro que encontras espalhadas pelas paredes e colunas do
templo. Fui eu que as fiz. Juntei-as aqui todas. Já não são mais marcas de
canteiro. São os códigos da minha vida. Por isso lhe chamo a porta dos códigos. Dela vi o céu e dela fiz da minha vida um
inferno. Uma luz frouxa rompeu a solidão da nave anunciando o dia. Os dois
frades desceram apressados, frei João, o noviço, preocupado, frei Elias,
ofegante. Atravessaram a nave. O frade cisterciense, com a ponta de uma lâmina,
tirou as cavilhas de segredo da porta que dava passagem para o cemitério e os
dois desapareceram para além da porta
dos mortos». In Luís Rosa, O Claustro do Silêncio,
Editorial Presença, Lisboa, 2002, ISBN978-972-23-2902-6.
Cortesia de E. Presença/JDACT