O Primeiro Voo do Falcão
«(…) No mesmo ano em que nascemos rebentou a guerra na Inglaterra entre
as casas de Lencastre e de York. Como símbolo duas rosas, uma branca, outra cor
de sangue, e inicia-se o confronto em Saint Albans. Sempre as guerras e o sangue
no rasto estéril do homem. Já bastava Mahomet derrubando as muralhas de
Constantinopla, fazendo de Santa Sofia o templo pagão dos seguidores do
Profeta! As frases são como os homens: morrem e são substituídas sempre por
outras melhores ou piores. Quando Justiniano, ao rever-se na colossal
cúpula de Santa Sofia, gritou: Salomão,
eu venci-te!, não poderia prever que um turco de tez pálida e cabelos
castanhos-claros, de olhos amarelos como os dos gatos, fosse arrasar as defesas
da cidade e ajoelhar-se no mesmo recinto, transformado em mesquita, para orar a
Allah. Ainda é do meu tempo, segundo a descrição de alguns viajantes, o erguer
de minaretes na Aya Sofia Camii (isto no linguajar turco), que o
imperador cristão tanto amou e de que tanto se orgulhou. Frei Jerónimo, frei
João Sobrinho, homem da Teologia e que ensinou em Oxford, na Inglaterra, e que
foi amigo e mestre de El Rei Duarte I, e outros, todos os homens cultos do seu
tempo, os viajantes, os frades mendicantes, os que percorriam o mundo para
cumprir uma promessa ou para aumentar seu mantimento e cabedal falaram de
Constantinopla como se referissem um sonho. Frei João Sobrinho e frei Jerónimo
encontraram pessoas que por lá passaram e viveram. Nas cortes europeias doutos
teólogos e escritores discorriam sobre a última sede do poder de Roma no
Oriente, a herdeira de Constantino, o
Grande, da sua extensão e beleza, feita
como um escudo em três pontas do qual uma se acha sobre o estreito ou braço de
São Jorge; a outra sobre um golfo largo que chega a Galipoli e a outra até
norte onde está o porto de mar... As grandes cidades de miragem que a
grandeza do passado enobrecia e fazia protegidas dos deuses: Roma,
Constantinopla e Antioquia. Onde estão
agora, com excepção de Roma que continua a ser o centro do nosso mundo?
Eu, que toda a vida quis escrever a história de Roma e de Alexandre, sinto mais
que ninguém esse fluir inexorável do tempo e aqui, em Nápoles, onde vou
desembarcar para prosseguir o meu caminho, começo a sentir a pequenez do mundo
e a da minha alma! E mesmo que eu tivesse visto com os meus olhos do corpo, como
a viu meu avô pela leitura de um texto de um escritor árabe, a dez passos a oeste
da igreja de Santa Sofia, a grande coluna de cem braças com o pedestal de
mármore no topo onde se ergueu a grande estátua de Justiniano, não mudaria de
opinião. Onde estará o seu cavalo de
bronze e a coroa de ouro, pérolas e rubis? Onde estão as toneladas de ouro e pedras preciosas que enchiam
dezenas de salas do seu palácio? Ah, o tempo, Deus meu, o tempo, como
ele é o grande mestre e senhor! E foi preciso chegar aqui, a Nápoles, para aprender,
enfim, isto! A verdade é que a única obra que nunca pretendi escrever é esta
que redijo agora, e é também a única que ficará porque cresce dentro de mim
como um filho e a arte é um dom e a prova, apesar das nossas mediocridades, de
que ao homem foi concedida a suprema alegria de tentar, mesmo a um nível
inferior e quantas vezes pueril, igualar-se nos actos supremos da beleza e da harmonia
ao seu Criador.
No 11 de Maio o príncipe foi baptizado, na grande
catedral, com pompa nunca vista em Lisboa, depois dos festejos do casamento da
sua tia imperatriz. Nove dias depois toda a corte se mexia de novo, em alegria,
com o casamento de outra tia, D. Joana, em Córdova, com o gordo rei Henrique IV
de Castela. O pai, o alegre e orgulhoso Afonso, o quinto de nome, estava
radiante, levando com os familiares mais chegados, onde se incluía também, os
anos cevam os ódios!, prima e cunhada Filipa que saíra de Odivelas, trajando
majestosamente como toda a corte, aliás, para acompanhar ao altar o pequeno
João que iria amá-la toda a vida e respeitá-la como a uma mãe. D. Isabel,
feliz, sabe que venceu a partida e que o amor do rei não irá nunca desaparece.
Olha-o, aquele jovem apaixonado, aureolado pela perfeição espiritual de um Amadis,
o cavaleiro doirado das novelas de cavalaria, pelo sonho eterno do amor e da cruz,
o infatigável buscador do Graal, apesar dos seis trabalhos sobre Astronomia e
Alquimia e os estudos de Latim e Matemática. Ainda era cedo para o bom e
honesto rei escolher para divisa a palavra Jamais, como o faria a partir de
Dezembro desse ano..., e Isabel nesse momento, e porque às vezes Deus é também
bom e sábio, apesar de todas as nossas dúvidas, não o podia adivinhar e
achava-se a bem com o mundo e o seu próprio destino que parecia ter passado a
mimá-la». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II,
Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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