Afonso V e o seu herdeiro
«(…) Também Afonso V, jovem pai e jovem rei, certamente reconhecia e admirava
a inteligência e capacidades desde cedo manifestadas pelo seu herdeiro, mas a
busca da sua companhia era talvez mais determinada pela necessidade de
estabelecer uma ligação sólida com o menino tão precocemente órfão de mãe. E
não seria este movimento do rei ditado por uma acusação latente de ter sido causador dessa prematura morte?
Nao teria esta procura alguma coisa a ver com a decisão de não ser identificado
pelo próprio filho como o inimigo que
estava do lado dos que assassinaram seu avô e eventualmente teriam contribuido para a morte prematura de sua mãe?
Embora a inexistência de documentação, aliada ao carácter subjectivo da hipótese,
nos impossibilite a sua demonstração, a informação veiculada pelos cronistas
pode ilustrar um pouco do que dizemos.
A Etapa Africana
Na crónica de Afonso V encontramos pela primeira vez o testemunho duma
decidida atitude deste monarca, relativamente a seu filho, quando no reino se
resolveu a tomada de Arzila. Escreveu o autor: … detriminou ElRey a requerimento do principe seu Fylho, e contra conselho
dos mais.pryncipaaes do Reyno de o levar nesta passajem comsygo. Esta
atitude do monarca, se foi expressão da sua vontade de ter sempre consigo o
Príncipe, não o foi menos da determinação e insistência do jovem. Se tomarmos
como base de análise, para a insistência do Príncipe em acompanhar o pai, a
narrativa que de todo o processo foi feita por Damião de Góis, somos confrontados
com dois tipos prováveis de interpretação:
- o príncipe João, no entusiasmo dos seus 15 anos, estava totalmente deslumbrado com a heroicidade e valentia do pai, cuja expressão máxima via manifestada neste projecto; consequentemente, no seu sonho de aventura, quis a todo o custo segui-lo. Este modo de agir, que dificilmente se identifica com a maturidade que Resende via no jovem príncipe, pode explicar-se pelo símbolo que as conquistas no norte de Africa foram para a dinastia de Avis;
- os mesmos 15 anos, na sua necessidade de afirmação, no seu espírito de contradição, no seu ideal de desafio aos mais velhos, manifestavam-se, nesta atitude como um desafio ao próprio pai; necessariamente o rei teria de fazer uma escolha dificil: com o Conselho ou com o príncipe. Escudado na esperança de que a decisão do pai lhe seria favorável, o príncipe arriscou; ganhando, estava já a contrariar todos aqueles senhores que vinha identificando como estando do lado oposto ao seu.
Esta segunda interpretação tem certamente muito mais a ver com o crescimento
e boas manhas que Resende viu no seu
senhor. Se as duas hipóteses colocadas são pertinentes, a verdade é que a
segunda deixa transparecer muito mais do carácter decidido, observador e
ferspicaz do príncipe. Vamos deter-nos nalguns aspectos mais significativos da
descrição de Damião de Góis para melhor podermos entender o significado da
atitude de João. A afirmação com que
inicia o capítulo, Quomo os pensamentos do príncipe em tudo passassem hos limites de sua
idade, deixa de imediato a convicção de que o jovem não decidiu de
ânimo leve; que o não teria feito por capricho também o cronista parece ter
querido esclarecer quando afirmou que o príncipe andou alguns dias cuidoso, por se
nam saber determinar se elle em pessoa descobrisse sua vontade a elRei, ou lha
mandasse dizer per outrem; que tinha consciência da sua pouca idade e
da leveza com que poderia ser tomada pelo rei e pelo Conselho a sua pretensão,
também o cronista o testemunhou ao escrever que o príncipe considerendo que por ser tam moço
quomo era poderia haver nelle menos authoridade da que convinha, pera per sim
mesmo poder impetrar seu requerimento, determinou de descobrir sua tençam a dom
Alvaro Castro, conde de Monsanto, por ser pessoa de que elle muito confiava, e
saber que era muim acçepto a elRei. Destes três exemplos parece poder
inferir-se que não houve imaturidade na pretensão do jovem, mas sim uma vontade
muito forte de conseguir ver aprovada a sua ideia de acompanhar o Pai; por isso
pensou na melhor maneira de convencer o Rei e buscou o modo mais provável de
obter bons resultados. Decidiu-se a pedir ajuda, mas ao fazê-lo não hesitou em
ameaçar que, a não ser aprovada a sua pretensão, de duas cousas se ha de seguir hüa:
ou que de desprazer hei de cair em algüa grave doença, ou depois de Sua Alteza
partido, ho hei de seguir, e se nam for quomo Prinçipe, será quomo hum
aventureiro soldado. A sua decisão não se vergou perante as razões do
amigo que, no meio de elogios por tanta generosidade, tentou convencê-lo que a
sua ida não era oportuna, alegando-lhe para isso: a condição de recém-casado,
que não deveria deixar a jovem esposa; o facto de ser herdeiro único e não ter
ainda descendentes e, finalmente, o desgosto que daria à princesa sua mulher e que
poderia até vir a ser causa da sua morte. Mas nenhuma destas razões serviu para
demover o Príncipe; antes, para todas as razões encontrou apropriada resposta dizendo
que do
que tocara acerqua dos desgostos da Princesa, que hos homens nas cousas que lhe
muito compriam, se de fecto eram homens, nam deviam ter nenhüa conta com as
tenções, nem desejos das molheres, has quaes eram sempre mais inclinadas a seus
particulares apetites, e vontades, que a toda bõa rezam, e honrra de seus maridos;
que quanto a elle ser moço, que nessa parte lhe pareçia que tinha milhor causa,
porque ha arte da guerra, na qual ha experiencia he a que se mais requere, nam
se podia aprender bem, se nam na moçidade; e no que tocava ha sucçessam do
Regno, posto que filho nam tevesse, soubesse de çerto, e que assi o podia dizer
a elRei seu senhor, que a tam honrradas heranças nunqua faltaram taes
herdeiros, quaes lhes a ellas convem, porque em tamanhos casos, Deos a cuja
providençia tudo he presente, sempre ordena ho que he mais seu serviço, tanto
pera bem dos Regnos, quomo dos Reis delles, ho qual por sua infinda bondade
tera a cargo estes, quomo ho attegora sempre fez. Ou por força dos seus
argumentos ou por determinação expressa da sua vontade, o Príncipe conseguiu
convencer o conde a defender a sua causa junto de Afonso V; desta mediação
resultou haver ho prinçipe ha liçença
que tanto desejava». In Manuela Mendonça, D. João II, Um Percurso
Humano e Político nas Origens da Modernidade em Portugal, Imprensa
Universitária 87, Editorial Estampa, Lisboa, 1991, ISBN 972-33-0789-8.
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