Retratos
«O pai morreu antes do seu nascimento e a mãe partiu para Espanha pouco
depois dele começar a mamar; não mais a viu, a não ser dentro de si. E esse
encontro é o retrato da dor; é um retrato pintado com as cores mais sinistras
da sombra, uma figura sem figura dentro, um vazio atroz, silêncio e mais
silêncio. A tragédia da falta de descendência de Sebastião enraíza aqui; nunca conseguiu ver formosura nas mulheres,
mas apenas incómodo. Certos historiadores, acusaram-no de misoginia, mas o rei
nada tinha contra as mulheres, sentia-se apenas intimidado na sua presença.
Quem se admira que assim fosse com uma mãe fantasmática, que nunca existiu senão à distância? Essa mãe foi na cabeça
de Sebastião um ser mitológico
batendo as asas no vazio da noite, asas assustadoras que voejavam lá nas terras
planas, secas e velhas de Castela e vinham ecoar de forma lúgubre e viscosa ao
pé da foz do Tejo. Aos três anos morre-lhe o avô, o rei João III, e é assim que
ele herda a coroa e é rei, o último rei de Portugal, que morreu quase menino, poucos
anos depois, deixando Portugal mergulhado na escuridão fria da noite e da
morte. Que tragédia tão desesperada e tão remota e que grito tão fundo; tão
fundo que não se calou e acordou mesmo Sebastião
do sono da sua morte. Mas a tragédia de Sebastião
é muito mais larga e toca a desgraça de toda uma época crua e sangrenta, com os
incêndios dos autos-de fé a lavrarem por toda a Ibéria e as viagens por mar que
rebentavam a placenta do mundo e faziam nascer o universo sujo e global dos
dias de hoje, a enferrujada esfera armilar do rei português João II. A época é
um novelo de morte e renascimento.
Tanto se ouvem os gritos de um parto como os de um funeral; é o clamor
terrível dos cristãos-novos e o dos índios de Bartolomeu de las Casas,
escravizados no Paraíso, no jardim virgem do Éden, por homens vestidos de ferro
e de ferro na mão. Espadas e esferas, armas e armilas eram feitas com o mesmo
metal frio e escuro. Também as cruzes eram batidas na mesma frota; não se diferenciavam
das espadas e também elas tinham lâminas cortantes. Os gritos dos
cristãos-novos são tão chocantes e tão longos como os dos índios violados às portas
do Paraíso. São gritos de uma surpresa tão dolorosa que chegam até aqui, ao
lugar onde escrevo; atravessam os séculos sem qualquer dificuldade, como um
relâmpago a descer do céu. Ainda hoje se ouve o seu rugido de sofrimento
infernal. É a pior tragédia, a tragédia das boas razões, do bom catecismo, da
boa obediência, a dos frades e a dos catecúmenos à força, num curral de
torturas e num escritório de hipocrisia. E a tragédia de Manuel I, a de João III,
a de Henrique, cardeal-infante, ou a de Catarina de Áustria, rainha de Portugal,
e até a de Carlos V, imperador da Alemanha e primeiro rei de Espanha, e a de
Filipe II, seu filho. No fundo, trata-se da tragédia daquele mundo que nasceu
em 1209 quando o abade de Citeaux, tendo
diante de si os amedrontados habitantes de Béziers, ordenou aos cruzados do rei
de França, que haviam descido ao Sul, à procura dos cátaros: - Matai-os
a todos! Deus reconhecerá os seus!
É a tragedia dos familiares de Sebastião; e é a nossa, que descendemos desse
mundo e somos mesmo sem querer a sua continuação. A tragédia do rei que foi
para Alcácer Quibir não é porém apenas negra e trágica. É também cómica e
pícara, diverte e por isso merece ser escrita. Em vez das astúcias da sensatez
dos seus maiores temos as loucuras da
sua inocência ou as inocências da sua loucura. Loucura e inocência
fazem dele uma personagem única, como a beleza fizera já de dona Inês um ser
excepcional. Enquanto a época geria a pimenta, fazia contas, pintava cenas
clássicas, esculpia nus, traçava cartas e passava os primeiros diplomas a
engenheiros e topógrafos, Sebastião
entretinha-se a representar. E um actor, porque nunca passou de uma criança, e
ainda por cima uma criança rebelde ao meio, sem pais e sem convívio. A sua vida
é uma paródia, uma mistificação da vida dos adultos, um fruto da imaginação que
tanto é infantil como mística. Houve no seu tempo uma freira, Maria de Menezes,
que mostrava radiante na palma das mãos as chagas de Cristo. Descobriu-se que
as chagas eram pintadas, mas isso em vez de lhe dar vergonha deu-lhe
obstinação. A sua lógica era artística, não empírica. Também os sucessos da
vida de Sebastião parecem mistificações. E o bisneto de Manuel I e o neto de
João III por linha masculina, mas na verdade nada tem a ver com eles. É uma
personagem única que está mais próxima da ilusão que da realidade. Passa vinte
e quatro anos de vida num palco, representando como um actor ou tão-só como uma
criança imaginativa; parece um artista e a sua corte uma tenda de circo». In
António Cândido Franco, A Saga do Rei Menino, a Aventura de um Menino, ficando
Encoberto na luz das estrelas…, Ésquilo, Lisboa, 2007, ISBN 978-989-8092-14-4.
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