quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Estâncias Reunidas. Poesia. António Cândido Franco. «Na escuridão do meu silêncio a palavra ressuscita e exuma o que está esquecido. Na caligem do meu ser a memória faz levedar o nada. Na minha noite íntima a saudade acorda os mortos»

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Estâncias
[…]
«De noite o que se vê é o que se ouve.
Chegam-nos as coisas através de sons.
Somos cegos.
O que se vê é o que se imagina.
A cor do sol é o som do coração.
A luz não se vê

mas contra o escuro
bater se ouve o lume.
Secos estalidos
contra a terra do peito.
Na escuridão

sou como um cego.
Tacteio.
Oiço então no firmamento
o crepitar de uma flor secreta.
Tenho o ouvido encostado
à vidraça do mundo.
Nada vejo.
Dos meus olhos a luz
pelas sombras da noite inutilizada.
Oiço apenas
no negro
estrelas borbulhando
como âgua.
Pedaços de céu a ferverem
a alta temperatura
no buraco da noite.


Em visão traduzo o que oiço
e vejo na escuridão
pétalas em lume
espuma de leite
pólen luminoso.
Rebenta aqui
na treva deste Inverno
uma Primavera de luz eterna».
Poema de António Cândido Franco, in ‘Estâncias Reunidas

In António Cândido Franco, Estâncias Reunidas, 1977-2002, Quasi edições, biblioteca Finita Melancolia, Vila Nova de Famalicão, 2002, ISBN 972-8632-64-9.

Cortesia de Quasi/JDACT