«É uma história curiosa a que tenho de
contar, uma história de difícil absorção e entendimento, por isso é uma sorte
que eu tenha as palavras para cumprir a tarefa. Se eu mesma digo isso, quando
talvez não devesse, é que, para uma menina da minha idade, tenho um óptimo
vocabulário. Extremamente bom, para falar com franqueza. Porém, devido às opiniões
rígidas de meu tio em relação à educação das mulheres, tenho escondido minha
eloquência, soterrado meu talento e mantido apenas as formas mais simples de expressão
aprisionadas no cérebro. Tal dissimulação transformou-se em hábito e foi motivada
pelo medo, pelo grande medo de que, se falasse como penso, ficaria evidente meu
contacto com os livros e eu seria banida da biblioteca. E, como expliquei para
a pobre Whitaker (pouco antes de sua trágica morte no lago), isso é algo que não
acredito que possa suportar. Blithe House é um grande celeiro, uma mansão de
pedra rústica com muitos cómodos, tão imensa que meu irmão caçula, Giles, tão rápido
nas pernas quanto lento na cabeça, leva três minutos ou mais para percorrê-la;
uma casa desconfortável e deteriorada pela prudência, negligenciada, com os
gastos controlados rigidamente (meu tio ausente tendo perdido todo o interesse
por ela), com vazamentos e buracos, traças e ferrugem, fria, mal iluminada,
repleta de cantos escuros, de modo que, apesar de ter vivido aqui toda a vida
até onde consigo me lembrar, às vezes, especialmente às vésperas do inverno, quando
vem caindo o crepúsculo, sinto tremores.
Blithe tem dois corações, um quente, um
frio; um iluminado, outro sombrio mesmo no dia mais ensolarado. A cozinha, onde
o forno está constantemente ardendo, é alegrada pela gorda Meg, sempre
sorridente e com os braços enfiados na farinha, normalmente namorando com John,
o empregado, que tenta conseguir um beijo, mas contenta-se com uma bitoca
enfarinhada. Na porta ao lado, com o fogo estalando durante nove meses do ano,
fica a sala da governanta, onde se pode encontrar Grouse sentada na poltrona
costurando ou diante da escrivaninha às voltas com inúmeros papéis, tentando,
como ela diz, dar sentido às coisas sem pé
nem cabeça, o que me parece contraditório, para que se encaixem. Esses dois aposentos formam um dos corações,
o quente. O coração frio (mas não para mim! Ah, não para mim!) bate no outro
lado da casa. Mal-amada e esquecida, excepto por mim, a biblioteca não poderia
ser mais diferente da cozinha: sem lareira, fria até no auge do verão, gelada
no inverno, as janelas escurecidas por cortinas pesadas jamais abertas, de
maneira que preciso roubar velas para ler e depois limpar os pingos
incriminadores do chão. De uma ponta à outra mede 104 passos meus com sapatos,
e 37 na largura. Três homens poderiam ficar em pé, um em cima do outro, e mal
conseguiriam tocar o tecto. Cada centímetro das paredes, tirando a porta, as
janelas e os assentos abaixo delas, está coberto por prateleiras de madeira, do
chão até ao tecto, todas ocupadas inteiramente por livros.
Nenhuma criada jamais entra aqui; o piso não
é varrido, pois, se intocado por passos,
por que deveria sê-lo? As prateleiras não têm marcas de impressões
digitais, as escadas móveis para se chegar às prateleiras mais altas são
mantidas sempre no mesmo lugar, os livros suplicando para serem abertos, todo o
lugar relegado à poeira e ao abandono. Sempre foi assim (excepto quando havia
governanta, mais adiante), ao menos até onde me lembro, pois aqui cheguei pela
primeira vez há um terço da minha vida, quando tinha 8 anos. Ainda não tínhamos
governanta, porque Giles, que é três anos mais novo que eu, e a quem se
destinava a educação, era considerado jovem demais para a escola ou para
qualquer tipo de aprendizem, e um dia estávamos brincando de esconde-esconde quando
abri uma porta estranha, uma que até então sempre estivera trancada, ou assim pensava
eu, provavelmente devido à sua rigidez, que meu eu mais jovem não
conseguiu vencer, para me esconder dele ali, e descobri esse imenso tesouro de
palavras. A brincadeira foi logo esquecida; fui de prateleira em prateleira,
pegando um livro atrás do outro, espirrando com a poeira ao abrir cada um
deles. E claro que eu não sabia ler, mas por algum motivo isso me deixava ainda
mais maravilhada, todos os milhares, acho que milhões, de linhas codificadas
com impressão indecifrável. Muitos livros eram ilustrados, com xilogravuras e
gravuras coloridas, citações frustrantes logo abaixo, cada uma delas mostrando
a miserável impotência do tracejar dos dedos. Depois, após receber uma
reprimenda por ter desaparecido por tanto tempo que a Grouse colocara todo
mundo à minha procura, não apenas as criadas mas também a enfarinhada Meg e
John, pedi à Grouse que me ensinasse a ler. Instintivamente, nada falei da
biblioteca e senti muito medo quando ela me olhou de forma estranha e disse: Muito bem, senhorita, o que foi que a
levou a ter essa ideia? Era uma daquelas perguntas que é melhor não
responder, pois, se fica em silêncio, os adultos sempre partem para alguma
outra coisa; falta-lhes a persistência das crianças. Ela respirou profundamente
e soltou um longo suspiro. A verdade, Florence, é que não estou certa de que
seu tio queira isso. Ele deixou muito clara a sua visão a respeito da educação
das jovens. Acho que ele diria que este não é o momento». In John Harding, A Menina que Não
Sabia Ler, Leya Brasil, 2010, ISBN 856-293-611-1.
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