quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Penúria no 31. George Orwell. «A fome reduz uma pessoa a um estado sem cérebro, e sem coluna vertebral, que se parece mais com os efeitos tardios da gripe do que com qualquer outra coisa. É como se uma pessoa se tivesse transformado num molusco qualquer…»

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«A fome reduz uma pessoa a um estado sem cérebro, e sem coluna vertebral, que se parece mais com os efeitos tardios da gripe do que com qualquer outra coisa. É como se uma pessoa se tivesse transformado num molusco qualquer, ou como se não se tivesse sangue, e o sangue tivesse sido substituído por água morna. A inércia completa é a minha principal recordação da fome; isso e ser forçado a esca… com frequência, à medida que o esca… ganha uma estranha cor branca de algodão, como se fosse saliva de cuco. Não sei a razão do fenómeno, mas todas as pessoas que conheci e que passaram fome durante alguns dias falam da mesma coisa».

«Ó ferida da injúria, condição da pobreza

«Sete da manhã, na rue du Coq d’Or, Paris. Sobe da rua uma enfiada de gritos estridentes e furiosos. Madame Monce, a dona do pequeno hotel que fica precisamente diante do meu, desceu para o passeio, e daí dirige as suas imprecações contra uma locatária do terceiro andar- Tem os pés sem meias enfiados em socos e o cabelo grisalho desgrenhado. Madame Monce: Salope! Salope! Quantas vezes te disse já para não esmagares os percevejos contra o papel da parede? Estás convencida que compraste o hotel, não? Não podes atirar os bichos pela janela como toda a gente? Putain! Salope! A mulher do terceiro andar: Vieille vache! Irrompe, entretanto, um coro discordante de uivos, e as janelas abrem-se de todos os lados, enquanto metade da rua se encontra já envolvida na zaragata. Mas tudo se cala de súbito, passados dez minutos, Porque um esquadrão de cavalaria atravessa a rua e toda a gente fica a vê-lo passar.
Este breve apontamento destina-se apenas a transmitir ao leitor um pouco do espírito da rue du Coq d'Or. Não é que lá as zaragatas fossem o único acontecimento observável, mas é verdade que raramente se passava uma manhã sem a ocorrência de pelo menos uma crise como a que acabo de descrever. Brigas e os gritos desolados dos vendedores ambulantes, os berros das crianças dedicadas à apanha de cascas de laranja no chão, e, com a noite, cantigas entoadas a plenos pulmões, de mistura com o cheiro azedo dos caixotes do lixo, tal era a atmosfera peculiar da rua. Era uma rua estreitíssima, um carreiro de casas esgalgadas e leprosas, imobilizadas umas sobre as outras, rígidas, como se tivessem sido bruscamente congeladas no instante anterior à derrocada. Todas as casas da rua eram hotéis, hotéis a abarrotar de gente, na sua maioria polacos, árabes e italianos. No rés-do-chão dos hotéis havia pequenos bistrots, onde uma pessoa podia embebedar-se por uma soma equivalente a um xelim. Nas noites de sábado, cerca de um terço da população masculina do quarteirão encontrava-se em estado de embriaguez. Havia zaragata por causa de histórias de mulheres, e os locatários árabes, que viviam nos hotéis mais baratos, entregavam-se habitualmente a misteriosas dissensões internas, batendo-se com cadeiras atiradas pelo ar e, por vezes, a tiro de revólver. Durante a noite, só dois a dois os polícias entravam na rua. Era um lugar razoavelmente ruidoso. E, no entanto, no meio de toda aquela barafunda e de todo aquele barulho, vivia uma pequena população bem instalada de lojistas franceses, padeiros, lavadeiras e outros negociantes, comunidade à parte que ia somando tranquilamente as suas pequenas fortunas. Tratava-se, de facto, de um bairro característico de certas zonas pobres de Paris. O meu hotel chamava-se Hôtel des Trois Moineaux. Era um emaranhado sóbrio de cinco andares, dividido por tabiques de madeira, em quarenta quartos. Os quartos eram pequenos e irremediavelmente sujos, porque não havia empregada de limpeza, e Madame F., a patronne, não tinha tempo para tratar disso. As paredes de madeira tinham a espessura de um fósforo e, para tapar as rachas, haviam sido cobertas por camadas e camadas de papel cor-de-rosa, que se despegavam aos pedaços e serviam de abrigo a um sem fim de percevejos. Junto ao tecto, longas filas de percevejos marchavam durante todo o dia como colunas de soldados, e à noite desciam até ao chão, ferozes e famintos, de tal modo que de tantas em tantas horas o inquilino tinha que se levantar e proceder a uma hecatombe. À vezes, quando os percevejos se tornavam mais ameaçadores, a solução consistia em queimar um pouco de enxofre, obrigando-os a retirar para o quarto do lado; então, o inquilino do lado podia ripostar, queimando enxofre no seu quarto e devolvendo os percevejos na direcção anterior. O hotel era um lugar sujo, mas acolhedor, porque Madame F. e o marido eram boas pessoas. A renda paga pelos quartos variava entre trinta e cinquenta francos por semana». In George Orwell, Na Penúria em Paris e em Londres, 1985, Antígona, Lisboa, 2003, ISBN 972-608-031-2.

Cortesia de Antígona/JDACT