Sonho. Glória. Poder e Intriga.
«O príncipe João nasceu a um sábado, 3 de Maio de 1455, e foi baptizado onze dias depois.
Seu pai era homem de arrebatamentos, não aguentaria muito tempo sem fazer as
festas que todos esperavam, sobretudo porque não conseguia disciplinar a
ansiedade. O príncipe não podia viver muito tempo subjugado ao pecado original,
era necessário expurgá-lo deste anátema, mergulhá-lo na água benta para a
purificação resultar. Ao baptizado não faltou ninguém, nem sequer o mais
distraído lisboeta. O rei e a rainha, a família chegada também: dona Catarina,
irmã do rei; dona Filipa, irmã da rainha; a marquesa de Vila Viçosa, as
duquesas de Bragança e de Viseu e muitas mais. Todas elas, cerca de sessenta, vestidas à francesa de ricos brocados (tela
de seda entretecida a ouro; a mais preciosa é a que tem relevo e se diz brocado
de três altos), perfumaram-se com água das rosas com polvilhos de Chipre,
as mais sofisticadas com benjoim do
oriente, odor muito mais eficaz para anular as exsudações. Nem o tio-avô da
criancinha faltou, o virtuosíssimo infante Henrique, obrigado a fazer uma pausa
nas suas superiores obrigações para estar presente. Os fidalgos atropelaram-se
nas escadarias da Sé. Queriam entrar todos ao mesmo tempo, ficar próximo do
príncipe e ainda mais do rei, um bando de aves arrastando as suas capas
roçagantes, que todos usavam nesse dia, farpelas que os faziam suar mas que
ajudavam a limpar o caminho que ia dar à Sé. O bispo de Braga lá estava,
rodeado por outros bispos e uma multidão de sacerdotes todos prontos a ajudá-lo
nas orações, de modo a dar ao menino a capacidade de participar na vida
trinitária: Em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo. Determinado, actor principal de tal cenário, o bispo de
Braga quase afogou o recém-nascido na pia baptismal, livrando-o do pecado de
ter sido cúmplice na destruição da esmeralda deslumbrante.
Filho de rei, presumível herdeiro da Coroa, João não podia ser baptizado como
qualquer plebeu. Para fazer a diferença teve dois padrinhos e três madrinhas, a
protecção reforçada para tão ilustre recém-nascido. Os mesteres, representados
nas suas confrarias, estavam também presentes, tal qual os mercadores e restante
burguesia, alguns deles homens-honrados que não queriam perder tão animado forró.
As gentes, os estratos mais baixos da sociedade, apenas tinham direito a ver
passar o cortejo, acenar, dar vivas ao rei e ao príncipe, esperando que o
soberano fosse magnânimo e lhes proporcionasse alguma coisa de comer e beber durante as muitas festas e alegrias que
se fariam. Findo o baptizado, a procissão rompeu Sé acima, em direcção ao castelo
de S. Jorge, ao som sibilante das charamelas (instrumento de sopro, semelhante
a trombeta direita com buracos para extrair sons diferente) e sacabuxas (espécie
de trombeta dividida ao meio com uma peça basculante para lhe alterar os sons),
intermediadas pelos tambores que adoçavam os sons estridentes das trombetas. O
arcebispo seguia atrás do pálio onde a criança fora depositada, os outros
bispos vinham logo a seguir, antes mesmo do rei, precedência que o monarca
respeitava e que ensinaria ao filho quando este tivesse entendimento. A seguir
ao rei vinha uma extensa procissão de fidalgos e gente de menor estatuto,
preparados todos para a festa que seria de arromba.
Como um príncipe se faz homem num instante, vamos encontrá-lo
pronto para casar quando ainda a barba não necessitava de despontes. A noiva, dona Leonor de Viseu, era sua
prima co-irmã, filha Fernando, irmão de Afonso V. O pai da noiva seria
o nobre de maior gabarito de Portugal, com os títulos de duque de Viseu e de
Beja, governador da Ordem de Cristo, entre muitos outros senhorios e
privilégios. Não foi difícil os manos entenderem-se. A fraternidade é um
sentimento poderoso, as alianças políticas ainda mais, e quer Afonso V quer
Fernando, ao juntarem os filhos, constituíam uma barreira poderosa às ambições
do duque de Bragança. Por todos estes motivos, não valeram de nada os esforços
do rei de Castela, Henrique IV que propunha ao monarca português com
insistência o casamento da sua filha Joana com o príncipe João. Casamento por
amorr Nem sei se o jovem tinha alguma vez visto a prima. Era um contrato de
família, os interesses régios antes de tudo, os afectos viriam depois. Tanto
mais que a princesa tinha doze anos e o príncipe quinze, longe ainda das
solicitações do corpo, sobretudo D. Leonor, que provavelmente ainda não lhe teriam
chegado as primeiras regras». In Jorge Sousa Correia, As Sombras de D.
João II, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-155-0.
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