Uma introdução à sua leitura
«Durante os cerca de 32 anos que viveu entre
nós (1485-1517?),
Cataldo Sículo confiou aos impressores residentes em Portugal a
publicação da sua vasta obra. Assim, em 1500
(sobre a data não há quaisquer dúvidas, pois o cólofon é explícito a este
respeito), Valentim Fernandes Moravia, que exerceu a sua actividade sob a
protecção de dona Leonor e de Manuel I, imprimiu-lhe as Epistolae et
Orationes quaedam. A edição das restantes obras, a saber, Poemata,
Epistolae et Orationes secunda pars e Visiones, que
não trazem qualquer indicação cronológica, é, porém, como demonstra Luís de
Matos, posterior a esta.
NOTA: O humanista Cataldo
Parísio Sículo terá vindo para Portugal por volta de 1485, por intermédio do futuro bispo de Lamego, Fernando Coutinho,
para cuidar, a pedido de João II, da educação de Jorge, filho ilegítimo do rei.
Viveu, por isso, entre 1487 e 1490, provavelmente, em
Aveiro, onde o seu aluno era educado, já desde os três meses de idade, pela Infanta
dona Joana, sua tia paterna, que residia no Mosteiro de Jesus desta cidade.
Depois da morte da Infanta, em Maio de 1490,
por vontade do rei e com consentimento da rainha dona Leonor, Jorge deslocou-se
para a corte e, com ele, o preceptor. Em Portugal, Cataldo foi, além de mestre
de latinidade e de preceptor, jurisconsulto, secretário latino de reis e orador
oficial de João II e provavelmente Manuel I, e ainda cultor das Musas.
Com efeito, em 1490, já na corte,
participou nos festejos de casamento do príncipe Afonso; foi ele quem escreveu
e pronunciou, às portas de Évora, a oração de entrada à princesa dona Isabel,
filha dos Reis Católicos (e será escolhido para idêntica tarefa, alguns anos
mais tarde, quando da entrada em Santarém da rainha dona Maria, segunda esposa
de Manuel I). E quando, meses mais tarde, o príncipe, em cuja educação terá
também colaborado, morreu, dedicou-lhe inúmeros epitáfios, entre outras
composições de maior fôlego. Cataldo estava vivo e ainda em actividade em 1516, facto que se depreende da
referência que Estêvão Cavaleiro lhe faz no Prólogo da Noua grammatkes
marie matrix dei virginis ars, saída a público neste ano, conforme Américo
Costa Ramalho.
Quanto aos Poemata, foram
provavelmente publicados num dos anos imediatos, talvez em 1502; foram objecto de reimpressão em 1569, por parte de António Castro, que desconhecia a edição em vida
do autor e que supunha estar a editá-los pela primeira vez. As duas outras
obras foram publicadas, tendo em consideração a cronologia de certos factos
históricos mencionados nos textos, provavelmente por volta de 1513-1514,
se bem que as composições que as constituem tivessem sido redigidas em anos
diferentes. Os cinco livros das Visiones e outras composições
incluídas no mesmo volume estariam, pois, prontos para publicação nesta data, mas
foram redigidos em anos diferentes, como poderemos constatar, de seguida, com o
Segundo livro de Visões, que foi redigido provavelmente em 1506. O Segundo livro de Visões,
de carácter profundamente religioso, dedicado à muito Sábia e Santa Rainha D. Leonor, está escrito em tom
elegíaco e tem como fio condutor a fantástica aparição à rainha de seu filho
Afonso, morto havia alguns anos. Com este artifício poético, o autor propõe-se,
mais do que lamentar a morte do príncipe, consolar a mãe no seu sofrimento de
tantos anos, entrando assim em profundas considerações sobre a fragilidade e
instabilidade da vida do homem, na terra: sobre os medos e sofrimentos que o afligem;
sobre a sua insanidade e frivolidade; sobre a conduta que, por ele, deve ser preferida;
sobre a recompensa que espera todo aquele que age correctamente em vida;
merecer ser elevado aos astros e ser colocado entre as estrelas, isto é,
merecer, depois da morte, a verdadeira vida, ideal bem cristão da ressurreição
para a vida eterna. Logo nos versos iniciais deste extenso poema, se faz alusão
a um surto de peste, que levara dona Leonor a refugiar-se em Alenquer, vila de
sua jurisdição. Consultando Damião de Góis e conjugando este
acontecimento com outros elementos do texto, podemos concluir que se trata
da peste que, em finais de 1505,
começou a grassar em Lisboa, levando a corte a refugiar-se em Almeirim.
NOTA:
Diz-nos Damião de Góis, na Crónica do
Felicíssimo Rey D. Emanuel, I Parte, cap. XCIV: Neste anuo como atras
fica scrito mandou el Rei a Roma dom Diogo de Sousa, Bispo do Porto, o qual
depois de ter negociado as cousas que levava ocora cargo, e ser Arcebispo de
Braga, se tornou ao Regno por mar, depois da chegada do qual a Lisboa, que foi
no mes Doctubro. se ateou logo peste tambrava na cidade, de huma nao que vinha
em sua companhia tocada sem o elle saber, que foi necessário írse el Rei com
toda sua casa para Almeirim, a qual pestilença se espalhou por todo o regno, e
foi uma das mais bravas, e cruel que em muitos tempos se acha, que ouvesse nenhuma
outra parte da Hispanha.
A data apontada pode ser confirmada por
outros dados fornecidos pelo poema, a saber: a referência dos vv. 61 e 62 a
João II, que nos permite concluir que ele já morrera, o que, desde logo, aponta
a redacção para depois de 1495: a
menção das mortes de Álvaro Portugal (vv. 209-212) e de Isabel, a Católica,
(vv. 91-92), ocorridas ambas no ano de 1504,
o que nos leva a concluir também que o texto é posterior a esta data. Estes
versos referentes a Isabel, a Católica,
dizendo que, quando descera pela primeira vez do céu à terra, o espírito do
príncipe fora conduzido por sua sogra, fornecem-nos a pista necessária para
concluirmos com exactidão sobre a data dramática do texto e provavelmente sobre
a sua redacção». In Helena Costa Toipa, O Segundo Livro de Visões de Cataldo Sículo,
Uma
introdução à sua leitura, Universidade Católica, Centro de Viseu, Revista
Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.
Cortesia da UCoimbra/JDACT