Cur
Non Utrumque
(…)
Todos os povos necessitam dos seus heróis, dos seus mitos. Nuno Álvares pertence
a essa estirpe de escolhidos. Nada podemos contra isso e nada tenho contra ele
que, além de bom militar e atento aprendiz de estratégias, continua com alma de
menino. Fez a sua escolha apenas e traiu-me como todos os outros. Criei-o na corte,
fi-lo cavaleiro e, antes, meu escudeiro. A discreta Iria, a sua mãe, que
esteve com minha filha como cuvilheira, sempre me respeitou. Hoje, não sei o
que sentirá por mim, mas as almas fortes e honestas não mudam. Quanto muito,
calam-se. Esse silêncio é mais elucidativo, muitas vezes, que um longo
discurso. Na realidade já me fez alguns favores, como providenciar para que
chegassem às minhas mãos cartas com palavras amigas, daqueles que, em silêncio,
em segredo, continuam a meu lado. O tempo também se encarregará de os aniquilar
ou conquistar para a causa do novo Rei de Portugal. Que assim seja. A vida é
assim. Vamo-nos cruzando ao longo dela com as linhas invisíveis de outros
destinos que Deus considerou tocarem as do nosso. Se Pedro de Portugal declarava
em Cantanhede, solenemente, que casara com D. Inês de Castro, e por isso os
filhos dela se intitulavam Infantes, o lugar do herdeiro estava seguro. O Rei
afirmava que o casamento se efectuara em Bragança em 1391, portanto sete anos antes. Ele conseguira matar todos os
assassinos menos um, Diogo Lopes Pacheco, um dos maiores celerados que conheci,
permanente agente espião ao serviço de Castela em Portugal. O seu destino irá
cruzar-se com o meu de uma forma brutal e decisiva, como vereis. Seguiu-se a
trasladação do que restava do corpo semimumificado da infeliz para o seu
esplêndido túmulo de Alcobaça. Foi uma jornada, ou melhor, várias, de horror. Fernando
contou-me um dia que temia o pai quando o via com os olhos raiados de sangue, a
boca a espumar, enraivecido, se se recordava de Inês e dos seus assassinos. É
natural. Hoje, não sei se Pedro teve mesmo o sentimento desse desgosto tão
profundo durante toda a vida, se ele se foi esbatendo ao longo dos anos e a sua
alma dilacerada e surpresa acabou por recriá-lo nesses instantes terríveis, porque
tudo se esgota, até a dor, e ele sentiria remorsos por já nada experimentar da
agonia inicial. É como se todos os actos praticados fossem simultaneamente um
lenitivo e um alimento para essa mesma dor.
Nos
anos que se seguiram, seis, se me não engano, o reino continuava vivendo entre
as loucuras do Rei e as notícias de Castela. Aqui sabe-se que o condestável de
França, Du Guesclin, passa a apoiar o partido de Henrique de Transtamara em luta
fratricida contra seu irmão, o rei Pedro I de Castela. Pedro é aliado do rei de
Inglaterra. E foram anos de peste também. O rei de Portugal protegia seus
filhos, os que tivera de Inês de Castro, com amplas doações e património. Os
filhos e o cunhado, Álvaro Perez Castro. Na Inglaterra, morria o duque de
Lencastre e John Gaunt herdava-lhe o título e os bens. Outra pedra no tabuleiro
de xadrez da política. João, filho
da galega Teresa Lourenço, foi investido no Mestrado da Ordem de Avis
porque também não era esquecido pelo pai. Como morrera Martim Avelar, o titular
da Ordem, o rei acedeu à proposta de Nuno Freire Andrade para nomear o garoto. Uma
lenda que os apoiantes do jovem João
apregoaram, e que ele soube sabiamente fazer frutificar, dizia que uma mulher
de fortuna informara o rei de que um dos seus filhos de nome João, seria Rei de
Portugal. Pedro já tinha o seu herdeiro
legítimo mas pensou sempre em João, filho de Inês de Castro. O pouco desenvolvido
e atarracado filho de Teresa Lourenço, de testa curta, olhos pequenos sob
aquela pálpebra gorda, com as bochechinhas salientes, caindo sobre o queixo que
acabava em bico, não teria certamente esse glorioso destino... Enganou-se. A
mãe do jovem não foi também relegada para as sombras do esquecimento. Recebeu
vários bens e casas em Avis. Isto tudo antes do ano (1407) em que o Transtamara,
com o auxílio dos franceses, captura o irmão e apunhala-o na própria tenda do
condestável de França, ou na dele, segundo referiam os testemunhos. Henrique
seria o novo rei de Castela e resolveria invadir a Galiza e Portugal onde se
acoitavam os apoiantes do falecido rei Pedro. John Gaunt irá dirigir as hostilidades.
Considera-se herdeiro pois casara com uma filha de Pedro de Castela. O rei de
Portugal não quer participar abertamente no conflito. Pelo menos não acedera ao
pedido de apoio do rei castelhano, antes da morte dele, quando veio a Portugal.
Para permanecer na paz assina um acordo com Henrique, em Outubro ou Novembro de
1404.
A
política interna de Pedro de Portugal geria-se por uma verdadeira demanda da
justiça. Percorre o País, como um louco, a fazê-la cumprir, como se tivesse
consciência de que o tempo lhe iriafaltar. Ainda trata do casamento de D. Isabel,
filha ilegítima do filho Fernando, com o irmão da rainha de Aragão. Teria uma neta
casada com o rei Frederico da Sicília. No entanto, isso, para infelicidade dela,
não se consumou. Nesse ano, João
professava na Ordem de Avis e o rei ainda concedeu Unhões a meu tio Afonso Telo
e mais terras patrimoniais a ele e à família». In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto
da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.
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