De acordo com o original
«Que,
no alto do principal de seus livros, confessasse Stendhal havê-lo escrito para
cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem
provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de
Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez
cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se
adotei a forma livre de um Stern de um Lamb ou de um de Maistre, não sei se lhe
meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevia-a com a
pena da galhofa e a tinta da melancolia; e não é difícil antever o que poderá
sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências
de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance
usual; e ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que
são as duas colunas máximas da opinião. Mas eu ainda espero angariar as
simpatias da opinião, e o meio eficaz para isto é fugir a um prólogo explícito
e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um
jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo
extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no
outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento
da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da
tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus». In Brás Cubas
«Algum tempo hesitei se devia abrir estas
memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento
ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas
considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou
propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi
outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.
Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo;
diferença radical entre este livro e o Pentateuco. Dito isto, expirei às duas
horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro
anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui
acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve
cartas nem anúncios. Acresce que chovia, peneirava, uma chuvinha miúda, triste
e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora
a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beira de minha
cova: -Vós, que o conhecestes, meus senhores,
vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda
irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este
ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um
crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais
íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E
foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei
para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do
moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo.
Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três
senhoras, minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, a filha, um lírio-do-vale,
e... Tenham paciência!, daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora.
Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do
que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo
que se deixasse rolar pelo chão, epiléptica. Nem o meu óbito era coisa altamente
dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que
reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha
a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos
estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha
extinção. - Morto!, morto!, dizia
consigo.
E a imaginação
dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo desde o
Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, a imaginação dessa senhora também voou por
sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir;
lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos.
Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das
damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão
da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá
fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito
menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser
deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha,
esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo
fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma. Morri de uma pneumonia;
mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil,
a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é
verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo». In Machado
de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881, Completa, volume I, RJ,
Brasil, Editora Nova Aguilar, 1994/1997, ISBN 85-2100-078-2.
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