As vozes da tradição
«Exuberante é a paisagem dos muitos –ismos,
alguns deles animados por uma violenta sede de auto-afirmação, como a
compensar a pressentida brevidade do seu destino, que povoaram as artes e
letras da Europa de fin de siècle e, sobretudo, as primeiras
décadas do nosso século (XX). Sinal de uma multiplicidade de influências
recentes, da busca de novos códigos expressivos, da necessidade de construção
de uma nova realidade poética ou, pura e simplesmente, consequência directa da
rejeição radical, quase neurótica, de qualquer código, trocado pela lei da
infracção absoluta, eles constituem o mais vivo sintoma de uma Europa
mergulhada em profundos conflitos e marcada por profundas alterações, de vária
ordem. Se nomes há que ficaram taxativamente vinculados a um movimento estético
e nele se esgotaram, em sincronia com a meteórica existência deste, será o caso
de um Tristan Tzara e da vida breve do Dadaísmo, outras figuras atestam um
itinerário diverso. Associadas primeiramente às manifestações de grupo de
rejeição caótica e exibicionista dos cânones artísticos aceites, rejeição essa
assumida em atitude provocatória dos gostos do público ou mesmo da opinião pública
em geral acabam por enveredar por um vanguardismo estético cuja inflexibilidade
e rigorismo de critérios dá azo a ferozes polémicas e a uma verdadeira tirania
de escolas. É certamente o caso, entre outros,
de André Breton e do movimento surrealista. Mas a rebeldia criadora dos maiores
situa-os para além de todo o objectivo polémico que obras suas possam ter lido,
ou mesmo para além de movimentos a cuja génese possam, porventura, ter estado ligados
e de que sejam os mais insignes representantes.
Recordamos o exemplo mais expressivo da arte
pictórica do nosso século (XX): Pablo Picasso. O cubismo alcançou nas suas telas os momentos de melhor
expressão estética na reinvenção plástica da realidade e exploração das suas
formas. E, no entanto, Picasso transgride continuamente os horizontes que abre
e que tendem a encontrar seguidores, a impor-se como escola. O seu jogo criador
consiste em, uma vez questionado e desmontado o princípio quase absoluto da
arte imitadora de realidades, ou da pintura impressionista de aparência de superfícies,
iniciar uma aventura estética, nascida da vitalidade inesgotável do seu
espírito irrequieto, da sede insaciável de representar, reinterpretar,
reinventar para a qual é lícita a utilização variada e, por vezes, simultânea
de recursos plásticos e linguagens pictóricas diversas. O artista move-se,
assim, num espaço de criação que vai da decomposição geométrica de grupo em Les
Demoiselles d’ Avignon à deformação longilínea e angustiada das Duas
irmãs, da fase azul, da composição triangular, ora gritante de
cor, ora eivada de melancolia, dos seus arlequins, ao manifesto de revolta de Guernica,
propositada e cuidadosamente caótica, de formas sobrepostas,
desintegradas, monstruosamente deformadas, ou à cena intimista de harmonia
tácita entre o Par de Namorados, onde a postura, o vestuário das
duas figuras, a clareza do traço lembra um quadro do Renascimento italiano. A
mesma delicadeza e finura de traço é apreciável nas ilustrações feitas para uma
edição das Metamorfoses de Ovídio ou para a da Lisistrata
de Aristófanes.
Esta dupla atracção pela aventura estética
inovadora e pela perenidade do clássico foram, certamente, determinantes, do
itinerário do artista e não são alheias à sua aversão ao enfeudamento a
tiranias de escola. E esta sua atitude deve-o ter aproximado de outros artistas
igualmente avessos ao rigorismo de grupos, igualmente motivados por essa
aventura de poiesis, ao mesmo tempo que fascinados pela
universalidade do clássico. Um deles é Jean Cocteau. A concepção
dramática desenvolvida por Jean Cocteau, sobretudo sob a influência do fascínio
que sobre ele exerceram os Baileis Russes, aponta para um teatro
como espectáculo total, onde o código verbal é apenas uma componente,
prescindível até, a conjugar com a música, a riqueza coreográfica, guarda-roupa
e cenários. E Cocteau persuade Picasso ao trabalho conjunto, em colaboração com
Diaghilev, para pôr em cena o teatro-bailado Parade, com música
de Satie. A preparação dos cenários leva o dramaturgo e o pintor à Itália, para
se encontrarem com o director dos Balíeis Russes. Juntos
visitarão as ruinas de Pompeios. Juntos irão trabalhar na encenação de Antigone
d’après Sophocle, versão condensada do texto sofocliano da autoria de
Cocteau, com música de Honegger. O cenário, naturalmente, é de Picasso, colunas
representadas sobre a ondulação do pano de fundo e, entre elas, a sugestão de
cabeças humanas a marcar a presença do Coro». In Maria do Céu Fialho, Jean Cocteau, La Machine Infernale, As vozes da tradição, Revista Humanitas,
volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.
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