segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A leitura do Budismo na obra de Dalila Pereira Costa. Rui Lopo. «… doutrina que ainda hoje se levanta cheia de vida no pensamento dum Schopenhauer e até entre nós obsidiou Antero de Quental e forneceu alimento às atitudes metafísicas de Oliveira Martins»


Cortesia de wikipedia e jdact

«Dalila Pereira Costa identifica na tradição cultural portuguesa uma predestinação teleológica ecuménica que seria visível principalmente na acção e obra dos poetas e pensadores da Renascença Portuguesa. Reflectindo, sobretudo, a partir do Cristianismo, estes autores teriam previsto, antecipado e proposto uma transformação histórica no sentido de um universalismo real por vir. Leonardo Coimbra, em importante artigo sobre a Saudade publicado na revista Águia procura encontrar, em diversas tradições culturais, filosóficas e religiosas, características antecedentes ou pontos similares aos da portuguesa proposta e experiência da saudade. Leonardo percorre assim as civilizações do Egipto, Babilónia e Pérsia, evoca os Celtas, discorre sobre a Índia e o Budismo do qual afirma ser doutrina que ainda hoje se levanta cheia de vida no pensamento dum Schopenhauer e até entre nós obsidiou Antero de Quental e forneceu alimento às atitudes metafísicas de Oliveira Martins. A curiosidade universal de Leonardo leva-o ainda a referir a hipnose, a teosofia, a filosofia de Bergson e o materialismo para concluir com uma adversativa a todos os exemplos mencionados: Mas há uma Religião, que é a mais alta e nobre expressão da Saudade, porque apresenta o homem como um viajante desta vida em procura da verdadeira Pátria do Infinito. É o Cristianismo. O Éden era a Pátria donde o homem foi escorraçado (...). Por vários motivos se reveste para nós de especial relevância esta reflexão de Leonardo Coimbra. Em primeiro lugar, Leonardo procede neste texto a propósito da Saudade a um conciso e circunscrito périplo por tradições espirituais, mundividências religiosas e correntes de pensamento que dá conta de uma abertura cultural e filosófica que enformará a atitude filosófica dos seus assumidos seguidores e continuadores, que sentirão também a necessidade de estudar e reflectir sobre o Oriente e o Extremo Oriente para compreender a própria história de Portugal ou para aprofundar algumas das mais originais características da sua cultura. Em segundo lugar, aponta o Budismo como uma influência obsidiante em Antero de Quental e um alimento metafísico de Oliveira Martins. Em terceiro lugar, aponta o Cristianismo como lugar da mais alta e nobre expressão da Saudade, antecipando características de algum pensamento filosófico português contemporâneo marcado pelo Oriente, aqui e ali sujeito até a ser considerado heterodoxo pela sua abertura ao mistério, pela atracção por posicionamentos que a história dos vencidos da filosofia não consagrou, por uma pulsão mística, mas acabando por culminar no Cristianismo. Este artigo deve assim ser considerado como um dos alicerces da atitude reflexiva e especulativa de Dalila Pereira Costa em seu texto: Saudade, unidade perdida, unidade reencontrada. A atracção desta autora pelo Oriente deve ser equacionada no contexto do grupo de pensadores que habitualmente se consideram como próximos do movimento da filosofia portuguesa, que lhe são imediatamente anteriores e de que Dalila se apresenta como original continuadora. Lembremos, por exemplo, que António Quadros, discípulo dos discípulos de Leonardo, Álvaro Ribeiro e José Marinho, considera o Oriente como um dos doze arquétipos da cultura portuguesa. Assim, a viagem para Oriente assinalará mais que o ponto extremo ou culminante do ciclo mar-nau-viagem-descobrimento-demanda; mais do que um ponto de chegada, um momento de transporte ou deslocação de Portugal para o Oriente. Crucial será o trazer do Oriente para o Ocidente. A ligação dos dois pólos implicará a sua indistinção futura, na medida em que cada um deles deverá encontrar em si características que permitam o diálogo com o outro. Segundo Quadros, o critério de aferição da boa orientação de uma filosofia será a sua disponibilidade de se configurar como pensamento armilar, integrando a fraternidade de raças, povos, religiões e ideias tanto ocidentais como orientais. O regresso à terra onde nasce o sol significa isso mesmo: a superação das filosofias e das tradições terrestre e localmente delimitadas. Um dos sentidos maiores das navegações residirá na sua virtualidade: a descoberta futura do mundo como um todo. As navegações teriam assim apenas preparado Descobertas que ainda agora se estão iniciando: a descoberta de todos por todos, condição preliminar do encontro da totalidade dentro de cada um. As palavras de António Quadros ecoam claramente o programa pessoano de portuguesa fusão de todas as crenças e filosofias e terá continuação na última fase da obra de Agostinho da Silva que nos assume como tarefa cultural e espiritual o encontro inter-religioso e ecuménico, relativizando cada uma das perspectivas e expondo o seu cariz restritivo porventura servindo-se, de forma não explícita, da budista teoria da dupla verdade, que talvez no Ocidente também já tenha tido algo de análogo no neo-platonismo, o que libertadoramente nos inibirá de apormos ao pensamento o designativo de oriental ou de ocidental, pois que em cada um dos pólos se manifesta aquilo que no outro vem também a surgir. As navegações e o encontro de culturas que lhe está associado deve ser assim visto como uma tarefa por cumprir e não como um feito a celebrar». In Rui Lopo, A leitura do Budismo na obra de Dalila Pereira da Costa, Estudos, Universidade de Lisboa, Associação Agostinho da Silva, Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Ano VI, 2007.

Cortesia da ULisboa/JDACT